domingo, 22 de agosto de 2010

O trabalho analítico cotidiano, algo a se pensar...

No Seminário XIII, lição 17, do dia 11/05/66, encontramos uma referência ao trabalho analítico cotidiano, quando, referindo-se à formação dos psicanalistas, Lacan observa:

“A relação do psicanalista com a questão do seu estatuto retoma aqui em forma de uma agudeza desdobrada, a propósito do que, desde sempre, é colocado como o estatuto de quem detém o saber. O problema da formação do psicanalista não é, senão, permitir através de uma experiência privilegiada, que nasçam, que se dêem à luz – se me permitem a expressão – sujeitos para os quais esta divisão do sujeito não seja tão somente algo que eles sabem, mas também algo no que pensem. Trata-se de que se dê à luz alguns que pudessem descobrir o que experimentam na experiência psicanalítica, a partir desta posição sustentada, pela qual nunca estão em estado de desconhecer que, no momento de saber, como analista, estão em uma posição dividida.”

A que se refere Lacan, quando fala de uma ‘experiência privilegiada’?
Para Heidegger, a experiência não é um mero fazer ou atuar, mas algo que se define como “faire une maladie”, ou seja, fazer ou sofrer uma enfermidade*. Tal é, também, de certo modo, a formulação com que Freud define a experiência psicanalítica, na medida em que a caracteriza como uma ‘doença artificial’, á qual nomeia ‘neurose de transferência’. Artefato do qual se vale a estrutura na experiência de uma análise.
Experiência privilegiada, porque privilégio é “a vantagem que se concede a alguém com exclusão de outrem e contra o direito comum”, assim reza o Aurélio e, portanto, algo singular, único, distinto. Então, dessa experiência privilegiada, Lacan espera o surgimento de um sujeito capaz de refletir, de pensar sobre o sujeito dividido. Entretanto, a esse pensar, não se aplicam os encaminhamentos do cogito cartesiano.
Daquele que viveu a experiência analítica e ‘sabe’ da divisão do sujeito, espera-se um pensar advindo do real.
A experiência da falta está na base, e é condição prévia do próprio “corpus” teórico da Psicanálise, de todos os princípios de sua clínica, do estatuto, de seu objeto, do lugar do analista e de sua direção ética.


*A experiência é, para Hegel (1810/1992), um movimento dialético que conduz a consciência até si mesma, explicitando-se a si mesma como objeto próprio. O conteúdo da consciência é o real. A mais imediata consciência de tal conteúdo é a experiência. A experiência é o modo como aparece o sujeito e o objeto (o Ser para Hegel). Este modo de aparecimento, enquanto processo ou constituição, é a formação da consciência. A noção de experiência não pode ser reduzida à experiência interior subjetiva, nem à experiência exterior objetiva. Trata-se de uma experiência absoluta, na qual o interior e o exterior apresentam-se imbricados um no outro.

Angela Porto

2 comentários:

  1. Angela Porto disse...
    A propósito de

    "Em todas as direções de todos os lugares em simultâneo a linguagem suspeita a realidade dada "

    Lucia Frota contribui, a título de comentário com excertos de texto de George Steiner em "Linguagem e Silêncio":

    "A língua de uma comunidade chega a uma situação perigosa quando um estudo de precipitaçaõ radiotiva pode ser intitulado " Operaçaõ Brilho do Sol"

    " As línguas tem grandes reservas de vida .Podem absorver grandes quantidades de histeria , analfabetismo, e vulgaridade " (pag 139)

    "Jude, Pole, Russe, vieram a significar, bichos de duas pernas ,vermes pútridos , que os bons arianos deveriam esmagar como dizia um manual do partido, "como baratas em uma parede " . "Soluçaõ final " ,endgültige L¨0sung, passou a significar a morte de seis milhões de seres humanos em câmara de gas "

    " O nazismo encontrou na língua o que precisava para expressar sua selvageria "....ele viu dentro do idioma pátrio ,a histeria , o transe hipnotico ,
    Ele mergulhou certeiro para dentro da vegetaçaõ rasteira da linguagem, para dentro daquelas zonas de escuridão e de clamor que estão na infância da fala articulada e que Vêm antes que as palavras se tornem suaves e provisorias ao toque da mente...ele pressentiu uma música além daquela de Goethe "... uma cadência áspera e obscena "... e o povo alemão devolveu em um eco o vociferar do homem"

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  2. Angela Porto disse...
    Lucia Frota,

    A inscrição da figura que ilustra alusivamente a postagem "O trabalho analítico cotidiano, algo a se pensar..." é:
    "Em todas as direções de todos os lugares em simultâneo a linguagem suspeita a realidade", e não "a realidade dada". Vc quis dizer algo mais? Acho que é diferente "a realidade" e "a realidade dada"..

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