terça-feira, 22 de novembro de 2016

“CRIANTIA E CONTOS”: Cada Caso é uma Letra.



“Os livros são objetos transcendentes

Mas podemos amá-los do amor tátil

Que votamos aos maços de cigarro.

Domá-los, cultivá-los em aquários,

Em estantes, gaiolas, em fogueiras.

Ou lançá-los para fora das janelas.” [Caetano Veloso – “Livro”]

Voz escrita daquilo que se ouve.

Acolhimento que se despoja no ato.

Escrever

“um tom para a voz

um tom pra dizer

um tom pra viver.” [idem]

O tempo da esperança, é o que retorna aos meus ouvidos através deste livro que não acabo de ler.  Nem sei se daria para fazê-lo, pois são tantos espaços que, com ele, agora em mim se recreiam como alegres lembranças novas. Antigos prazeres inacabados que a leitura provoca e passa a me contar neles. Algo aprendido com ‘isso’ ... que o contador de histórias recria e faz renascer em infâncias.

“CRIANTIA E CONTOS”

Dimensão do Possível que reaviva também meus sentidos do trabalho com a Psicanálise.
Surpresa, é o efeito tácito e único que advém do discurso sem palavras, que a leveza da escrita deste livro encerra:
Testemunho daquilo que se escuta e que não mais ficará esquecido...
Janelas, portas e coração abertos na Psicanálise em Extensão.
Transmissão e passagem por onde o livro de Angela Porto se lança ao advento de um Novo Leitor.

Lúcia Montes.

Belo Horizonte, 22 de novembro de 2016

segunda-feira, 7 de novembro de 2016


   Criantia, do latim, é o que está em criação...
   Este livro, se origina de outra criação, o blog “Criantia e Contos”(www.criantiaecontos.blogspot.com), on-line desde 2010.  Pretendi que fosse um lugar de escrita aberto aos que se dispusessem a ler, nos contornos das palavras de uma criança ou nas entrelinhas do que ela não consegue dizer, a rica elaboração de seu momento, sempre pulsante e cheio de perguntas.
  Entre esses me incluí, como um ouvinte atento e como blogger. Talvez me parecesse o lugar mais assemelhado ao lugar de um analista.
   Um blogger é um mediador. Através dele, pretende-se que um vazio, este sim, mediador verdadeiro, possa permitir trançar e escrever, daquilo que nos trabalha, desde uma palavra até uma interjeição, desde um desenho até um rabisco vindos de onde vierem, chegue até onde chegar... nossa experiência.
Ali me deixei trabalhar pelas questões das crianças, aquelas cuja proximidade me foi mais rica, de cuja escuta me vali, para, por que não, tratar o que, do mais íntimo e particular de cada um, está sempre em tratamento: a vida.
 Da exigência do trabalho à cordialidade da forma, não há necessariamente incompatibilidade.  O cordial é o que vem do coração. Não se pretendem interpretações psicanalíticas, nem reflexões pedagógicas ou educativas. Não há correções nem censuras que durem mais que o segundo esperado da presença de um adulto, ouvinte sujeitado às regras da cultura e tocado pela surpresa.
Os ditos e fatos falam por si. Eventualmente faço comentários, talvez como efeitos de minha inserção neles, como ouvinte, participante ou até mesmo, como sujeito interpretado por um dizer(!) Talvez por puro prazer!
 As estorinhas das crianças primam pela leveza. São breves, condensadas e provocam surpresa, pois abrem um espaço à verdade. Têm a estrutura do chiste que, como tal, instiga a sua transmissão a um terceiro e provoca riso. Não são piadas, é importante ressaltar, mas podem eventualmente tratar-se de fino humor. E o humor foge ao “politicamente correto”. Vale-se dele para desobedecê-lo. O humor é uma forma sublimada de lidar com as dores do existir, sem perder a graça.
E as crianças são mestras nesse saber.
As crianças, em constituição e ainda prenhes de censura, fazem valer sua intimidade com o que angustia, o que mais se aproxima da verdade, o que tange a experiência de tentar escrever, bordejar o que não pode ser escrito, mas insiste: a vida, a morte, o sexo e a sexualidade, o desejo e a verdade!
Publicar estes ditos de crianças é nos dispormos ao chiste e ao humor que eles providenciam. É podermos todos nos divertir e aprender com eles.
Não há expectativa, nem idealismo, só uma aposta insistente na vida. As crianças acabam levando a gente a renovar esta aposta, todos os dias. 
E aqui me valho, de novo, de uma criança e de seu escrito.
Dedicatória a seus leitores, no seu livrinho, escrito à mão:
“Para você guardar e se divertir pelo resto de sua vida!”
Publicar é guardar e lançar fora. Ela sabe que há uma parcela de satisfação de que se usufrui naquilo que se guarda e daquilo que se lança fora.
Faço essas minhas palavras também.


Angela Porto

segunda-feira, 11 de abril de 2016

POR UMA LETRA QUE ESCREVA ÉTICA. Lampejos De Um Instante Vazio de Ser



Observamos que às vezes somos pegos de surpresa por uma Homofonia que, em conversas corriqueiras despertam uma curiosa dúvida coletiva, numa espécie de estranheza frente a um “como é mesmo que se escreve?  É com dois esses? Ou cê cedilha? ”
O inconsciente, estruturado como uma linguagem, faz suas manifestações assim, quase que como num truque de esconde/mostra faz suas travessuras numa espécie de falha ou de um tropeço que nos desperta. Por essa fresta de luz vamos ao enigmático conflito da nossa divisão de ser falante/falado, na inquietante condição de não sermos os reais detentores das palavras das quais somos emissários/destinatários. Há um desejo em causa aí.
Em “A Instância da Letra no Inconsciente”, um trabalho minucioso por sua visada literal e clínica, Lacan propõe uma problematização conceitual da Função da ‘Letra’, como possibilidade de uma transmissão no real da experiência analítica, por uma centelha que passasse entre audível e legível, com a particularidade de não anular a porção de ‘enigma’ com que o desejo inconsciente desafia nossa ‘filosofia natural’.
É então por uma elaboração lógica que Lacan articula a premissa de que o escrito é necessário à decifração de uma escuta que reescreva a gramática particular daquele som e re-enderece ao sujeito as assonâncias do que aí sutilmente se insinua.
Com esta perspectiva literal de quanto se perde de vida, quando não se cria as condições necessárias para dar lugar ao singular do desejo, Lacan traz à tona o paradoxo de um Escrito para ser Ouvido nas urdiduras de uma Palavra que se faça Ler.
Freud atravessou guerras, e teve que se exilar, em meio aos conluios tão evidenciados em seu insistente trabalho de alertar, sobre a íntima captura narcísica das paixões em que o Humano se deixa envolver, no silencio imantado do gozo dos ideais, pelo prazer de saber e de dominar o outro. Gozo que se instaura como um tempo anterior e imanente ao estatuto de humanidade. Tempo em que a linguagem se trespassa em Ser, como servidão à condição autônoma da liberdade estruturada como Neurose.
A Neurose é para Freud uma interrogação que o Ser coloca para o Sujeito, “lá de onde ele estava antes mesmo que o sujeito viesse ao mundo”.
Mas, contudo, há que se atualizar sempre pelo trabalho que nos faz seguir nas trilhas da experiência que ensina o indestrutível do desejo na subversão do sujeito e, mais ainda, perseverar no que for possível de se fazer saber da verdade daquilo que no humano grita através de seu escrito,
Voz a se ouvir na singularidade da letra que chega ao destino.   
Através do poeta, deixemo-nos atravessar pelo poema.

“Cruzou por mim, veio ter comigo, numa Rua da Baixa
Aquele homem mal vestido, pedinte por profissão que se lhe vê na cara,
Que simpatiza comigo e eu simpatizo com ele;
E reciprocamente, num gesto largo, transbordante, dei-lhe tudo quanto tinha
(exceto, naturalmente, o que estava na algibeira onde trago mais dinheiro:
Não sou parvo nem romancista russo, aplicado,
E romantismo, sim, mas devagar...)
Sinto uma simpatia por essa gente toda, sobretudo quando não merece simpatia.
Sim, eu sou também vadio e pedinte,
E sou-o também por minha culpa.
Ser vadio e pedinte não é ser vadio e pedinte:
É estar ao lado da escala social,
É não ser adaptável às normas da vida,
Às normas reais ou sentimentais da vida –
Não ser Juiz do Supremo, empregado certo, prostituta,
Não ser pobre a valer, operário explorado,
Não ser doente de uma doença incurável,
Não ser sedento da justiça, ou capitão da cavalaria,
Não ser, enfim, aquelas pessoas sociais dos novelistas
Que se fartam de letras porque têm razão para chorar lágrimas,
E se revoltam contra a vida social porque têm razão para isso supor.

Não: tudo menos ter razão!
Tudo menos importar-me com a Humanidade!
Tudo menos ceder ao humanitarismo!
De que serve uma sensação se há uma razão exterior para ela?

Sim, ser vadio e pedinte, como eu sou,
Não é ser vadio e pedinte, o que é corrente:
É ser isolado na alma, e isso é que é ser vadio,
É ter que pedir aos dias que passem, e nos deixem, e isso é que é ser pedinte.
Tudo mais é estúpido como um Dostoiévski ou um Gorki.
Tudo mais é ter fome ou não ter o que vestir.
E, mesmo que isso aconteça, isso acontece a tanta gente
Que nem vale a pena ter pena da gente a quem isso acontece.
Sou vadio e pedinte a valer, isto é, no sentido translato,
E estou-me rebolando numa grande caridade por mim.
Coitado do Álvaro de Campos!
Tão isolado na vida! Tão deprimido nas sensações!
Coitado dele, enfiado na poltrona da sua melancolia!
Coitado dele, que com lágrimas (autenticas) nos olhos, Deu hoje, num gesto largo, liberal e moscovita,
Tudo quanto tinha, na algibeira em que tinha pouco, àquele
Pobre que não era pobre, que tinha olhos tristes por profissão.
Coitado do Álvaro de Campos, com quem ninguém se importa!
Coitado dele que tem tanta pena de si mesmo!
E, sim, coitado dele!
Mais coitado dele que de muitos que são vadios e vadiam,
Que são pedintes e pedem,
Porque a alma humana é um abismo.
Eu é que sei. Coitado dele!
Que bom poder-me revoltar num comício dentro da minha alma!
Mas até nem parvo sou!
Nem tenho a defesa de poder ter opiniões sociais.
Não tenho, mesmo, defesa nenhuma: sou lúcido.
Não me queiram converter a convicção: sou lúcido.
Já disse: sou lúcido.
Nada de estéticas com coração: sou lúcido.
Merda! Sou lúcido.

A Plácida Face anônima de um morto.
Assim os antigos marinheiros portugueses,
Que temeram, seguindo, contudo, o mar grande do Fim,
Viram, afinal, não monstros nem grandes abismos,
Mas praias maravilhosas e estrelas por ver ainda.
[Fernando Pessoa – Poesias de Álvaro de Campos]
  
                                                                                                                                 Lucia Montes