sexta-feira, 12 de dezembro de 2014

Tecendo Travessias



                "Eu atravessava no meio da tristeza. De feito, eu carecia de sozinho ficar. Sozinho sou, sendo, de sozinho careço, sempre nas estreitas horas - isso procuro. Homem como eu, tristeza perto de pessoa amiga afraca. Eu queria mesmo algum desespero.
            Desespero quieto às vezes é o melhor remédio que há. Que alarga o mundo e põe a criatura solta. Medo agarra a gente é pelo enraizado. Fui indo. De repente, de repente, tomei em mim um gole de um pensamento - estrato de ouro: pedrinha de ouro. E conheci o  que é socorro.
(.....)
Bem, rezar aquela noite, eu não conseguia. Nisso nem pensei. Até para a gente se lembrar de Deus, carece de ter algum costume. Mas foi aquele grão de ideia que me acuculou, me argumentou todo. Ideiazinha. Só um começo. Aos pouquinhos é que a gente abre os olhos; achei de per mim. E foi: que no dia que amanhecia, eu não ia pitar, por forte que fosse o vício de minha vontade. E não ia dormir nem descansar nem sentado nem deitado. E não ia caçar a companhia do Reinaldo, nem conversa, o que de tudo mais prezava. Resolvi aquilo e me alegrei. O medo se largava de meus peitos, de minhas pernas. O medo já amolecia as unhas. Íamos chegando numa tapera, nas Lagoas do Córrego Mucambo. Lá nós tínhamos pastos bons. O que resolvi, cumpri. Fiz. Ah, aquele dia me carregou, abreviei o poder de outras aragens. Cabeça alta - digo. Esta vida está cheia de ocultos caminhos. Se o senhor souber, sabe; não sabendo, não me entenderá. (...) A vida da gente faz sete voltas - se diz. A vida nem é da gente."   [João Guimarães Rosa - 'Grande sertão: Veredas'].


Uma passagem de ano em paz são nossos votos.

terça-feira, 8 de julho de 2014

Mais-além da Aparência

Arlequim com violão, 1919
Juan Gris (Espanha, 1887-1927)
Perguntado sobre qual verso da poesia brasileira gostaria de ter escrito, o poeta Carlos Drummond de Andrade foi direto:

“Não chore ainda não
 Que eu tenho um violão
 E nós vamos cantar.” (Chico Buarque de Holanda)

Fala e Escrita. Lágrimas e Violão.
O Dito e o Dizer. O Fato e a Voz.
O ATO é um discurso sem palavras e quem o faz só depois saberá que se deixou conduzir por própria escolha.

Apropriar-se de um verso, de um gesto,
De uma lágrima.... de um resto.
Falar versos, gesticular proezas,
Chorar tristezas... até se desmanchar.

O APARATO da palavra esconde o desmanchado de um sujeito em seu discurso, mas não tem ainda todo poder de apagá-lo em seu desejo, este, sim, é o que resiste. E isto porque reordenando-se de suas letras, restos caídos de discursos, este mesmo sujeito emergirá do ato, sem palavras, da escolha apropriada de não recuar de seu desejo.
Mais além do que se diz há sempre, à espera, uma voz a se escrever. Um sopro-vida a germinar no arado da terra-dor de existir.
Escrita ex-grito.
Luto feito. Silêncio.
Luto acabado, morte entrelaçada em vazios de horizontes. Apropriada herança.
Fio de voz tecendo a vida por fazer.

Que nos leve mais além das esperanças este canto escrito da poesia que, por não ser só aparência, evoca-nos o frescor do saber que há em cada despertar.

Felicidade aqui pode passar e ouvir,
 E se ela for de samba há de querer ficar.”  (Chico Buarque de Holanda, em “Olê Olá”)


                                                                  Lúcia Montes

terça-feira, 15 de abril de 2014

O BOM DA VELHICE - uma crônica psicanalítica

Jazz de Matisse
                                                                                           
É isso mesmo!  Pretendo explorar um pouco o tema da velhice pelo lado bom.
Não se trata de um complexo de Poliana, nem de uma ironia a la Voltaire, em Cândido, o otimista. Ainda não sei bem, que nome dar a este escrito, mas... vamos lá.
Em um momento de descontração ao lado de meus netos, meu neto Gabriel me surpreende com uma pergunta: “Vó... é bom ser velha?”
Ainda sob o impacto da pergunta tão simples, verdadeira, sem nenhum preconceito, uma pergunta de pura curiosidade infantil, provavelmente evocada pela alegria que eu devia estar transmitindo de estar ali com eles  envolvida nas brincadeiras daquele mundo infantil, respondo sem pensar muito:
- É bom, é muito bom.
Não estava mentindo, naquele momento essa resposta era tão verdadeira quanto a própria pergunta.
Então... uma nova pergunta:
“Quais são as vantagens de ser velho?”
Em clima de brincadeira respondo:
- Ah! Podemos passar na frente nas filas, pegar o metrô sem pagar, pagar meia entrada nos cinemas e teatros... e, ficamos por aí na conversa que serviu de mote para muitas brincadeiras no decorrer da viagem que fazíamos juntos, principalmente nas situações em que essas vantagens se apresentavam. Ele olhava para mim, com um olhar de cumplicidade, como se dissesse “vai nessa vó”, ou “passa na frente”.
Algumas vezes ainda me recordo dessa pergunta que me pegou de surpresa, principalmente pelo fato de eu ainda não me sentir integrante dessa categoria, a dos velhos, embora, oficialmente, já esteja chegando lá.
Outras vantagens vão se perfilando na medida que foco nessa questão: Quais seriam as vantagens da velhice? Haveria mesmo alguma vantagem?
Tempos depois, leio uma entrevista da atriz Meryl Streep à uma revista,  na qual,  questionada por estar fazendo comédias românticas, meio água com açúcar, ela, que já fez filmes como A escolha de Sofia e tantos outros filmes de arte premiadíssimos, responde:
-“Depois que fiz 60 anos, não tenho  de provar mais nada à ninguém, quero fazer o que me dá prazer e acho divertido.” (Evidentemente, sem deixar de ser Meryl Streep)
Pensei comigo: mais uma vantagem da velhice:  já ter dado as provas que a vida  exigiu. Trata-se, agora, de um outro “fazer” que supõe uma liberdade e ao mesmo tempo um ato de se autorizar fazer diferente.
Sem procurar, vou encontrando, em minhas leituras algumas formulações e exemplos que fundamentam essa introdução, aparentemente simples, com que  comecei este  texto.
Parto da proposição de que a vida e a psicanálise caminham na mesma direção: o real.
O real inicialmente definido por Lacan como o impossível de ser simbolizado, correlativo à experiência do trauma, será, em seu último ensino, tomado como um campo de gozo, um campo sem lei, mas que tem uma lógica própria que inclui o corpo como suporte do gozo.
Como o corpo fala na velhice!
Na psicanálise o corpo se revela como puro acontecimento, opaco ao sentido, e se manifesta, principalmente, por meio da angústia.
Numa análise, o corpo  permanece deitado no divã, posição de exclusão e inclusão, num só tempo, numa posição tão específica do trabalho analítico, que o próprio divã se tornou um signo  do “fazer análise”.
Durante um tempo desse trabalho,  o corpo pode parecer ignorado ou alheio à riqueza das associações que povoam quase  todo o campo da experiência analítica. Mas, não todo.
A entrada em cena do corpo é correlativa à entrada em cena do gozo. É aí que se dá toda a diferença. Aquele que percorreu a via de seu inconsciente, que aprendeu a escutá-lo, a lê-lo, a levar em conta a existência de um campo do real que lhe impõe a extrema solidão do Um-sozinho que se é na trama da vida, terá mais recursos para se a ver com esse corpo que fala cada vez mais alto.  Isto por que a experiência analítica  é uma experiência que lida com o dualismo vida e morte ao nível da própria estrutura do sujeito.
E que recursos teria o sujeito frente ao real cada vez mais presente na medida que a vida passa?
 Lacan formulará o conceito de sinthoma a partir das marcas de gozo que comemoram a conjunção do Um sozinho e o corpo.
Não sei se tudo isso parece muito abstrato, afinal, o que é o sinthoma?
Tal como a vida, a psicanálise vai produzindo uma desconstrução, um desmantelamento daquilo que nos serviu de suporte durante algum tempo. As coisas caem, passam e se perdem. Se pensarmos pela via do phalus, esse caminho acarreta uma destituição subjetiva, uma perda de potência fálica, um reencontro com o horizonte desabitado do ser. Isso vai ao encontro do que é formulado sobre o final de análise, como uma assunção pelo sujeito do “nada que ele é”, no nível do seu inconsciente, pois, em outros níveis da sua existência ele é múltiplas coisas. É isso que Lacan chamou de encontro com o real, ou, quando as vestimentas fálicas, com as quais nos sustentávamos, começam a se desfazer.
Porém, existe algo na estrutura do sujeito, que perdura. Há alguma coisa que não passa e que constitui a marca do próprio sujeito, seu sinthoma. Podemos dizer que o sinthoma é o que resiste do sujeito e em relação ao qual, só poderá reinventá-lo
O saber disso, nos torna menos tolos frente ao real, nos torna capazes de encontrar uma outra satisfação, além do campo fálico. Os restos não simbolizados pela operação analítica não serão absorvidos, permanecerão, para sempre, inconscientes, enodados ou não, na fantasia de cada um. Existem substâncias gozantes suplementares, objetos que se acrescentam como fontes de prazer além da ordem simbólica. Pode-se pensar em uma solidão própria do sinthoma.  Esse sinthoma é um gozo solitário, mas, a partir do qual se estabelecem novos laços com a vida.
 Lacan o situa no real e o define como: “o modo como cada um goza do inconsciente, enquanto o inconsciente o determina”.
Essa nova dimensão do sintoma, foi formulada por Lacan  trabalhando sobre a biografia de James Joyce, cuja escrita  se tornou  seu sinthoma, na medida que, por meio de sua escrita, Joyce se fez um nome. Cada um de nós também faz sua própria escrita  no decorrer da vida, de modo tal que se pode reconhecer quem  se é, pelo talho dessa escrita.
Lembro-me de Oscar Niemayer, por volta de seus 104 anos, fisicamente debilitado, mas continuava dando voz àquilo que perdurou,  perdura e perdurará mesmo depois de sua morte.  Sua voz já tão enfraquecida mais parecia um sopro  e as pessoas estavam ali para ouvi-lo. Ele ainda era, até o final, Oscar Niemayer. Um sinthoma?
Se  há algo no sujeito que perdura, também há em sua estrutura  uma variável, que escapa à determinação e impõe o novo. Determinação e liberdade, dois operadores no ato de se reinventar.
Enfim,  o simples fato de existir pode ter leveza e graça, indo além das vestimentas fálicas. Isso vem como um a mais, um gozo suplementar, um “plus”, que alguns, como os poetas, conseguem aceder: Tudo passará, “...eles passarão... eu passarinho”  no bem dizer do poeta Mario Quintana!
Respondo, agora, de forma mais elaborada a pergunta de meu neto:
- Ser velho, não é bom, Gabriel. Porém, o bom da velhice pode estar na possibilidade de se reinventar  e poder explorar recantos do nosso ser que ficaram à espera de uma nova montagem, uma outra leitura de nós mesmos, o novo sempre presente, pois, o que somos, de fato, não envelhece.

                                             Gilda Vaz Rodrigues


sexta-feira, 14 de fevereiro de 2014

consumidores, assinantes, fidelizados, clientes preferenciais, retirados da miséria, usuários, mascarados de aluguel, credenciados da bolsa, nova classe consumidora, inquilinos do programa, manifestantes-eleitores, etc, etc, etc.... etc e tal.

                             
                                                        ...consumidores, assinantes, fidelizados, clientes preferenciais, retirados da miséria, usuários, mascarados de aluguel, credenciados da bolsa, nova classe consumidora, inquilinos do programa, manifestantes-eleitores, etc, etc, etc.... etc e tal.
Está formado, para mais um carnaval à brasileira, o massa-bloco da democrática distribuição de renda nacional.
 Mass-block, pode parecer redundante, mas vamos nomear assim o efeito lacrimogêneo da ambiguidade discursiva corrente, que cega e desvanece qualquer tentativa, manifesta ou latente, de se agenciar uma posição própria frente às nossa inquietações da vida cotidiana.
Sujeitados às várias nomeações de catalogação da burocracia vigente em nossa sociedade, vamos nos deixando encobrir pelo véu de um discurso quase soberano no reino das determinações do estilo de vida, pelo consumo.
Mecanismo próprio da formulação freudiana de que o objeto teria a genuína propriedade de apagar o desejo.
 E assim, nos entrecruzamentos do uso da linguagem com o abuso da comunicação, um enxame de apelos, por aparências cada vez mais sólidas, dissolve nossos sonhos mais particulares em ilusões de vitrines virtuais coletivas.
Os agenciadores deste discurso, ao modo de uma paixão pela mentira, para assim travestirem o ser, forçam passagem a uma atuação de comportamentos que encarnem uma espécie de ocultação, que por ser ocultação de nada, vela sua vontade de gozo levada ao extremo da cruel submissão popular.
 Nada disso é sem saber. Às vezes sinistro, ás vezes camuflado. Mas é um 'saber compor' a máscara e a cena que incitam ao respeito e suscitam cumplicidades.
'Ocultar nada' é a afirmação desmedida, e, paradoxalmente calculada, das evidências do exercício nefasto do poder de gozo. A força quase bruta desta ocultação só faz perseverar, nos indivíduos, a indução do seu desaparecimento subjetivo, ao conceder ao Outro todo o lugar e toda a decisão. 
Com efeito, esse discurso, que no caso poderíamos chamar de discurso do capitalista, na medida em que ele é uma determinação do discurso do mestre, encontra antes, aí, seu complemento. Longe de o discurso do capitalista se sair pior pelo reconhecimento como tal da mais-valia, parece que nem por isso ele deixa de subsistir, já que, aliás, um capitalismo retomado num discurso do mestre é justamente o que parece distinguir as conseqüências que resultaram, sob a forma de uma revolução política, da denúncia marxista do que se passa com um certo discurso do semblante.”
Falei do semblante, e disse alguma coisa que não é corriqueira nas ruas.
Apoiei-me inicialmente em que o semblante, que se mostra pelo que é, vem a ser a função primária da verdade. Há um certo ‘eu falo’ que faz isso, e não é inútil lembrá-lo para dar sua justa situação a essa verdade que cria tantas dificuldades lógicas.
É ainda mais importante lembrar isso porque, se há em Freud algo de revolucionário – digamos, para designar assim um certo tom, pois já adverti contra o uso abusivo da palavra –, se houve um momento em que Freud foi revolucionário, foi na medida em que ele pôs em primeiro plano uma Função que é também a sugerida por Marx – aliás, esse é o único elemento que eles têm em comum –, ou seja, considerar um certo número de fatos como sintomas.
A dimensão do sintoma é isso que fala. Fala inclusive com os que não sabem ouvir. E não diz tudo, nem mesmo aos que o sabem”  [ J. Lacan ]  
Citações extraídas do livro 18, “de um discurso que não seria do semblante”, do Seminário.

É este o estudo que, aberto a quem queira dele participar, propomos iniciar neste semestre, pela leitura passo a passo de cada lição, no cotejamento da tradução oficial com outras publicações editadas em francês,  fora de comércio,  por psicanalistas que freqüentaram estas aulas de Lacan, de 1971, em Paris.