terça-feira, 22 de novembro de 2016

“CRIANTIA E CONTOS”: Cada Caso é uma Letra.



“Os livros são objetos transcendentes

Mas podemos amá-los do amor tátil

Que votamos aos maços de cigarro.

Domá-los, cultivá-los em aquários,

Em estantes, gaiolas, em fogueiras.

Ou lançá-los para fora das janelas.” [Caetano Veloso – “Livro”]

Voz escrita daquilo que se ouve.

Acolhimento que se despoja no ato.

Escrever

“um tom para a voz

um tom pra dizer

um tom pra viver.” [idem]

O tempo da esperança, é o que retorna aos meus ouvidos através deste livro que não acabo de ler.  Nem sei se daria para fazê-lo, pois são tantos espaços que, com ele, agora em mim se recreiam como alegres lembranças novas. Antigos prazeres inacabados que a leitura provoca e passa a me contar neles. Algo aprendido com ‘isso’ ... que o contador de histórias recria e faz renascer em infâncias.

“CRIANTIA E CONTOS”

Dimensão do Possível que reaviva também meus sentidos do trabalho com a Psicanálise.
Surpresa, é o efeito tácito e único que advém do discurso sem palavras, que a leveza da escrita deste livro encerra:
Testemunho daquilo que se escuta e que não mais ficará esquecido...
Janelas, portas e coração abertos na Psicanálise em Extensão.
Transmissão e passagem por onde o livro de Angela Porto se lança ao advento de um Novo Leitor.

Lúcia Montes.

Belo Horizonte, 22 de novembro de 2016

segunda-feira, 7 de novembro de 2016


   Criantia, do latim, é o que está em criação...
   Este livro, se origina de outra criação, o blog “Criantia e Contos”(www.criantiaecontos.blogspot.com), on-line desde 2010.  Pretendi que fosse um lugar de escrita aberto aos que se dispusessem a ler, nos contornos das palavras de uma criança ou nas entrelinhas do que ela não consegue dizer, a rica elaboração de seu momento, sempre pulsante e cheio de perguntas.
  Entre esses me incluí, como um ouvinte atento e como blogger. Talvez me parecesse o lugar mais assemelhado ao lugar de um analista.
   Um blogger é um mediador. Através dele, pretende-se que um vazio, este sim, mediador verdadeiro, possa permitir trançar e escrever, daquilo que nos trabalha, desde uma palavra até uma interjeição, desde um desenho até um rabisco vindos de onde vierem, chegue até onde chegar... nossa experiência.
Ali me deixei trabalhar pelas questões das crianças, aquelas cuja proximidade me foi mais rica, de cuja escuta me vali, para, por que não, tratar o que, do mais íntimo e particular de cada um, está sempre em tratamento: a vida.
 Da exigência do trabalho à cordialidade da forma, não há necessariamente incompatibilidade.  O cordial é o que vem do coração. Não se pretendem interpretações psicanalíticas, nem reflexões pedagógicas ou educativas. Não há correções nem censuras que durem mais que o segundo esperado da presença de um adulto, ouvinte sujeitado às regras da cultura e tocado pela surpresa.
Os ditos e fatos falam por si. Eventualmente faço comentários, talvez como efeitos de minha inserção neles, como ouvinte, participante ou até mesmo, como sujeito interpretado por um dizer(!) Talvez por puro prazer!
 As estorinhas das crianças primam pela leveza. São breves, condensadas e provocam surpresa, pois abrem um espaço à verdade. Têm a estrutura do chiste que, como tal, instiga a sua transmissão a um terceiro e provoca riso. Não são piadas, é importante ressaltar, mas podem eventualmente tratar-se de fino humor. E o humor foge ao “politicamente correto”. Vale-se dele para desobedecê-lo. O humor é uma forma sublimada de lidar com as dores do existir, sem perder a graça.
E as crianças são mestras nesse saber.
As crianças, em constituição e ainda prenhes de censura, fazem valer sua intimidade com o que angustia, o que mais se aproxima da verdade, o que tange a experiência de tentar escrever, bordejar o que não pode ser escrito, mas insiste: a vida, a morte, o sexo e a sexualidade, o desejo e a verdade!
Publicar estes ditos de crianças é nos dispormos ao chiste e ao humor que eles providenciam. É podermos todos nos divertir e aprender com eles.
Não há expectativa, nem idealismo, só uma aposta insistente na vida. As crianças acabam levando a gente a renovar esta aposta, todos os dias. 
E aqui me valho, de novo, de uma criança e de seu escrito.
Dedicatória a seus leitores, no seu livrinho, escrito à mão:
“Para você guardar e se divertir pelo resto de sua vida!”
Publicar é guardar e lançar fora. Ela sabe que há uma parcela de satisfação de que se usufrui naquilo que se guarda e daquilo que se lança fora.
Faço essas minhas palavras também.


Angela Porto

segunda-feira, 11 de abril de 2016

POR UMA LETRA QUE ESCREVA ÉTICA. Lampejos De Um Instante Vazio de Ser



Observamos que às vezes somos pegos de surpresa por uma Homofonia que, em conversas corriqueiras despertam uma curiosa dúvida coletiva, numa espécie de estranheza frente a um “como é mesmo que se escreve?  É com dois esses? Ou cê cedilha? ”
O inconsciente, estruturado como uma linguagem, faz suas manifestações assim, quase que como num truque de esconde/mostra faz suas travessuras numa espécie de falha ou de um tropeço que nos desperta. Por essa fresta de luz vamos ao enigmático conflito da nossa divisão de ser falante/falado, na inquietante condição de não sermos os reais detentores das palavras das quais somos emissários/destinatários. Há um desejo em causa aí.
Em “A Instância da Letra no Inconsciente”, um trabalho minucioso por sua visada literal e clínica, Lacan propõe uma problematização conceitual da Função da ‘Letra’, como possibilidade de uma transmissão no real da experiência analítica, por uma centelha que passasse entre audível e legível, com a particularidade de não anular a porção de ‘enigma’ com que o desejo inconsciente desafia nossa ‘filosofia natural’.
É então por uma elaboração lógica que Lacan articula a premissa de que o escrito é necessário à decifração de uma escuta que reescreva a gramática particular daquele som e re-enderece ao sujeito as assonâncias do que aí sutilmente se insinua.
Com esta perspectiva literal de quanto se perde de vida, quando não se cria as condições necessárias para dar lugar ao singular do desejo, Lacan traz à tona o paradoxo de um Escrito para ser Ouvido nas urdiduras de uma Palavra que se faça Ler.
Freud atravessou guerras, e teve que se exilar, em meio aos conluios tão evidenciados em seu insistente trabalho de alertar, sobre a íntima captura narcísica das paixões em que o Humano se deixa envolver, no silencio imantado do gozo dos ideais, pelo prazer de saber e de dominar o outro. Gozo que se instaura como um tempo anterior e imanente ao estatuto de humanidade. Tempo em que a linguagem se trespassa em Ser, como servidão à condição autônoma da liberdade estruturada como Neurose.
A Neurose é para Freud uma interrogação que o Ser coloca para o Sujeito, “lá de onde ele estava antes mesmo que o sujeito viesse ao mundo”.
Mas, contudo, há que se atualizar sempre pelo trabalho que nos faz seguir nas trilhas da experiência que ensina o indestrutível do desejo na subversão do sujeito e, mais ainda, perseverar no que for possível de se fazer saber da verdade daquilo que no humano grita através de seu escrito,
Voz a se ouvir na singularidade da letra que chega ao destino.   
Através do poeta, deixemo-nos atravessar pelo poema.

“Cruzou por mim, veio ter comigo, numa Rua da Baixa
Aquele homem mal vestido, pedinte por profissão que se lhe vê na cara,
Que simpatiza comigo e eu simpatizo com ele;
E reciprocamente, num gesto largo, transbordante, dei-lhe tudo quanto tinha
(exceto, naturalmente, o que estava na algibeira onde trago mais dinheiro:
Não sou parvo nem romancista russo, aplicado,
E romantismo, sim, mas devagar...)
Sinto uma simpatia por essa gente toda, sobretudo quando não merece simpatia.
Sim, eu sou também vadio e pedinte,
E sou-o também por minha culpa.
Ser vadio e pedinte não é ser vadio e pedinte:
É estar ao lado da escala social,
É não ser adaptável às normas da vida,
Às normas reais ou sentimentais da vida –
Não ser Juiz do Supremo, empregado certo, prostituta,
Não ser pobre a valer, operário explorado,
Não ser doente de uma doença incurável,
Não ser sedento da justiça, ou capitão da cavalaria,
Não ser, enfim, aquelas pessoas sociais dos novelistas
Que se fartam de letras porque têm razão para chorar lágrimas,
E se revoltam contra a vida social porque têm razão para isso supor.

Não: tudo menos ter razão!
Tudo menos importar-me com a Humanidade!
Tudo menos ceder ao humanitarismo!
De que serve uma sensação se há uma razão exterior para ela?

Sim, ser vadio e pedinte, como eu sou,
Não é ser vadio e pedinte, o que é corrente:
É ser isolado na alma, e isso é que é ser vadio,
É ter que pedir aos dias que passem, e nos deixem, e isso é que é ser pedinte.
Tudo mais é estúpido como um Dostoiévski ou um Gorki.
Tudo mais é ter fome ou não ter o que vestir.
E, mesmo que isso aconteça, isso acontece a tanta gente
Que nem vale a pena ter pena da gente a quem isso acontece.
Sou vadio e pedinte a valer, isto é, no sentido translato,
E estou-me rebolando numa grande caridade por mim.
Coitado do Álvaro de Campos!
Tão isolado na vida! Tão deprimido nas sensações!
Coitado dele, enfiado na poltrona da sua melancolia!
Coitado dele, que com lágrimas (autenticas) nos olhos, Deu hoje, num gesto largo, liberal e moscovita,
Tudo quanto tinha, na algibeira em que tinha pouco, àquele
Pobre que não era pobre, que tinha olhos tristes por profissão.
Coitado do Álvaro de Campos, com quem ninguém se importa!
Coitado dele que tem tanta pena de si mesmo!
E, sim, coitado dele!
Mais coitado dele que de muitos que são vadios e vadiam,
Que são pedintes e pedem,
Porque a alma humana é um abismo.
Eu é que sei. Coitado dele!
Que bom poder-me revoltar num comício dentro da minha alma!
Mas até nem parvo sou!
Nem tenho a defesa de poder ter opiniões sociais.
Não tenho, mesmo, defesa nenhuma: sou lúcido.
Não me queiram converter a convicção: sou lúcido.
Já disse: sou lúcido.
Nada de estéticas com coração: sou lúcido.
Merda! Sou lúcido.

A Plácida Face anônima de um morto.
Assim os antigos marinheiros portugueses,
Que temeram, seguindo, contudo, o mar grande do Fim,
Viram, afinal, não monstros nem grandes abismos,
Mas praias maravilhosas e estrelas por ver ainda.
[Fernando Pessoa – Poesias de Álvaro de Campos]
  
                                                                                                                                 Lucia Montes

sábado, 22 de agosto de 2015

ÉTICA, por que não? ....e Mais, Ainda

O Pintassilgo, Carel Fabritius, 33 x 22 cm, 1654

“Me aconteceu de não publicar A Ética da Psicanálise. Naquele tempo, era pra mim uma forma de polidez... Com o tempo, aprendi que podia dizer sobre isto um pouco mais. E, depois, percebi que o que constituía meu caminhar era da ordem do não quero saber de nada disso.
É sem dúvida isto que, com o tempo, faz com que ainda eu esteja aí, e que vocês também, vocês estejam aí. Sempre me espanto com isto... ainda.”
“A Ética da Psicanálise, é talvez hoje, de todos os seminários que algum outro deve publicar, o único que eu mesmo reescreveria, e do qual eu faria um escrito. Tenho mesmo que fazer um, de qualquer modo. Por que não escolher aquele? ”
“Não há razão para a gente não se colocar à prova, e para não ver como, esse terreno, de que Freud fez seu campo, outros o viam antes dele. É uma outra maneira de provar o de que se trata, isto é, que esse terreno só é pensável graças aos instrumentos com que se opera, e que os únicos instrumentos, cujo testemunho se veicula, são escritos.”
[J.Lacan – Seminário XX – Mais, ainda]

Com este recorte, antes do começo, estamos propondo dar início a um estudo do Seminário XX de J. Lacan – Mais, Ainda – fazendo as incursões necessárias pelas passagens abertas em Seminários anteriores, e indicadas aí por Lacan, como possível referência a um outro modo de amarração no seu incessante Retorno a Freud.
Uma trilha que, a princípio, pensamos ser percorrida a partir do ‘Paradoxo do gozo’ em sua discussão ali da abordagem do tema da Ética em Aristóteles, no Seminário VII, "A Ética da Psicanálise".
Do Seminário XI – "Os 4 conceitos fundamentais da psicanálise", as problematizações do objeto a, nas abordagens do Olhar e o Quadro, em sua temporalidade lógica de Identificação para o sujeito.
Do Seminário XVIII – "De um discurso que não seja do semblante", as distintas formulações para Significante e Letra; para Linguagem e Escrita; e a inscrição lógica do falo enquanto Função.
Buscaremos, no passo a passo deste Estudo e da Leitura de cada um, manter a visada do lugar do analista enquanto “encarnado por um semblante de a” para que a análise “opere uma intervenção ao nível do inconsciente".
Obs: Contamos com que a leitura do Seminário 20, "Mais, Ainda..." de Lacan, disponível  em Francês e Português, e o cotejamento pontual dos mesmos, nas suas diferenças de estabelecimento e tradução, possam contribuir com a precisão de nosso estudo e  elaboração.

Informações e Contatos:

Ângela Porto (angelaaraujoporto@gmail.com) fones (31)32812212 e (31)91126575
Lúcia Montes (mluciamontes@gmail.com) fones (31)32238088 e (31)88758817

Local: Rua Fernandes Tourinho, 470, Funcionários, Belo Horizonte
Data de início: 14/09/2015 às 13,30 h

sexta-feira, 12 de dezembro de 2014

Tecendo Travessias



                "Eu atravessava no meio da tristeza. De feito, eu carecia de sozinho ficar. Sozinho sou, sendo, de sozinho careço, sempre nas estreitas horas - isso procuro. Homem como eu, tristeza perto de pessoa amiga afraca. Eu queria mesmo algum desespero.
            Desespero quieto às vezes é o melhor remédio que há. Que alarga o mundo e põe a criatura solta. Medo agarra a gente é pelo enraizado. Fui indo. De repente, de repente, tomei em mim um gole de um pensamento - estrato de ouro: pedrinha de ouro. E conheci o  que é socorro.
(.....)
Bem, rezar aquela noite, eu não conseguia. Nisso nem pensei. Até para a gente se lembrar de Deus, carece de ter algum costume. Mas foi aquele grão de ideia que me acuculou, me argumentou todo. Ideiazinha. Só um começo. Aos pouquinhos é que a gente abre os olhos; achei de per mim. E foi: que no dia que amanhecia, eu não ia pitar, por forte que fosse o vício de minha vontade. E não ia dormir nem descansar nem sentado nem deitado. E não ia caçar a companhia do Reinaldo, nem conversa, o que de tudo mais prezava. Resolvi aquilo e me alegrei. O medo se largava de meus peitos, de minhas pernas. O medo já amolecia as unhas. Íamos chegando numa tapera, nas Lagoas do Córrego Mucambo. Lá nós tínhamos pastos bons. O que resolvi, cumpri. Fiz. Ah, aquele dia me carregou, abreviei o poder de outras aragens. Cabeça alta - digo. Esta vida está cheia de ocultos caminhos. Se o senhor souber, sabe; não sabendo, não me entenderá. (...) A vida da gente faz sete voltas - se diz. A vida nem é da gente."   [João Guimarães Rosa - 'Grande sertão: Veredas'].


Uma passagem de ano em paz são nossos votos.

terça-feira, 8 de julho de 2014

Mais-além da Aparência

Arlequim com violão, 1919
Juan Gris (Espanha, 1887-1927)
Perguntado sobre qual verso da poesia brasileira gostaria de ter escrito, o poeta Carlos Drummond de Andrade foi direto:

“Não chore ainda não
 Que eu tenho um violão
 E nós vamos cantar.” (Chico Buarque de Holanda)

Fala e Escrita. Lágrimas e Violão.
O Dito e o Dizer. O Fato e a Voz.
O ATO é um discurso sem palavras e quem o faz só depois saberá que se deixou conduzir por própria escolha.

Apropriar-se de um verso, de um gesto,
De uma lágrima.... de um resto.
Falar versos, gesticular proezas,
Chorar tristezas... até se desmanchar.

O APARATO da palavra esconde o desmanchado de um sujeito em seu discurso, mas não tem ainda todo poder de apagá-lo em seu desejo, este, sim, é o que resiste. E isto porque reordenando-se de suas letras, restos caídos de discursos, este mesmo sujeito emergirá do ato, sem palavras, da escolha apropriada de não recuar de seu desejo.
Mais além do que se diz há sempre, à espera, uma voz a se escrever. Um sopro-vida a germinar no arado da terra-dor de existir.
Escrita ex-grito.
Luto feito. Silêncio.
Luto acabado, morte entrelaçada em vazios de horizontes. Apropriada herança.
Fio de voz tecendo a vida por fazer.

Que nos leve mais além das esperanças este canto escrito da poesia que, por não ser só aparência, evoca-nos o frescor do saber que há em cada despertar.

Felicidade aqui pode passar e ouvir,
 E se ela for de samba há de querer ficar.”  (Chico Buarque de Holanda, em “Olê Olá”)


                                                                  Lúcia Montes

terça-feira, 15 de abril de 2014

O BOM DA VELHICE - uma crônica psicanalítica

Jazz de Matisse
                                                                                           
É isso mesmo!  Pretendo explorar um pouco o tema da velhice pelo lado bom.
Não se trata de um complexo de Poliana, nem de uma ironia a la Voltaire, em Cândido, o otimista. Ainda não sei bem, que nome dar a este escrito, mas... vamos lá.
Em um momento de descontração ao lado de meus netos, meu neto Gabriel me surpreende com uma pergunta: “Vó... é bom ser velha?”
Ainda sob o impacto da pergunta tão simples, verdadeira, sem nenhum preconceito, uma pergunta de pura curiosidade infantil, provavelmente evocada pela alegria que eu devia estar transmitindo de estar ali com eles  envolvida nas brincadeiras daquele mundo infantil, respondo sem pensar muito:
- É bom, é muito bom.
Não estava mentindo, naquele momento essa resposta era tão verdadeira quanto a própria pergunta.
Então... uma nova pergunta:
“Quais são as vantagens de ser velho?”
Em clima de brincadeira respondo:
- Ah! Podemos passar na frente nas filas, pegar o metrô sem pagar, pagar meia entrada nos cinemas e teatros... e, ficamos por aí na conversa que serviu de mote para muitas brincadeiras no decorrer da viagem que fazíamos juntos, principalmente nas situações em que essas vantagens se apresentavam. Ele olhava para mim, com um olhar de cumplicidade, como se dissesse “vai nessa vó”, ou “passa na frente”.
Algumas vezes ainda me recordo dessa pergunta que me pegou de surpresa, principalmente pelo fato de eu ainda não me sentir integrante dessa categoria, a dos velhos, embora, oficialmente, já esteja chegando lá.
Outras vantagens vão se perfilando na medida que foco nessa questão: Quais seriam as vantagens da velhice? Haveria mesmo alguma vantagem?
Tempos depois, leio uma entrevista da atriz Meryl Streep à uma revista,  na qual,  questionada por estar fazendo comédias românticas, meio água com açúcar, ela, que já fez filmes como A escolha de Sofia e tantos outros filmes de arte premiadíssimos, responde:
-“Depois que fiz 60 anos, não tenho  de provar mais nada à ninguém, quero fazer o que me dá prazer e acho divertido.” (Evidentemente, sem deixar de ser Meryl Streep)
Pensei comigo: mais uma vantagem da velhice:  já ter dado as provas que a vida  exigiu. Trata-se, agora, de um outro “fazer” que supõe uma liberdade e ao mesmo tempo um ato de se autorizar fazer diferente.
Sem procurar, vou encontrando, em minhas leituras algumas formulações e exemplos que fundamentam essa introdução, aparentemente simples, com que  comecei este  texto.
Parto da proposição de que a vida e a psicanálise caminham na mesma direção: o real.
O real inicialmente definido por Lacan como o impossível de ser simbolizado, correlativo à experiência do trauma, será, em seu último ensino, tomado como um campo de gozo, um campo sem lei, mas que tem uma lógica própria que inclui o corpo como suporte do gozo.
Como o corpo fala na velhice!
Na psicanálise o corpo se revela como puro acontecimento, opaco ao sentido, e se manifesta, principalmente, por meio da angústia.
Numa análise, o corpo  permanece deitado no divã, posição de exclusão e inclusão, num só tempo, numa posição tão específica do trabalho analítico, que o próprio divã se tornou um signo  do “fazer análise”.
Durante um tempo desse trabalho,  o corpo pode parecer ignorado ou alheio à riqueza das associações que povoam quase  todo o campo da experiência analítica. Mas, não todo.
A entrada em cena do corpo é correlativa à entrada em cena do gozo. É aí que se dá toda a diferença. Aquele que percorreu a via de seu inconsciente, que aprendeu a escutá-lo, a lê-lo, a levar em conta a existência de um campo do real que lhe impõe a extrema solidão do Um-sozinho que se é na trama da vida, terá mais recursos para se a ver com esse corpo que fala cada vez mais alto.  Isto por que a experiência analítica  é uma experiência que lida com o dualismo vida e morte ao nível da própria estrutura do sujeito.
E que recursos teria o sujeito frente ao real cada vez mais presente na medida que a vida passa?
 Lacan formulará o conceito de sinthoma a partir das marcas de gozo que comemoram a conjunção do Um sozinho e o corpo.
Não sei se tudo isso parece muito abstrato, afinal, o que é o sinthoma?
Tal como a vida, a psicanálise vai produzindo uma desconstrução, um desmantelamento daquilo que nos serviu de suporte durante algum tempo. As coisas caem, passam e se perdem. Se pensarmos pela via do phalus, esse caminho acarreta uma destituição subjetiva, uma perda de potência fálica, um reencontro com o horizonte desabitado do ser. Isso vai ao encontro do que é formulado sobre o final de análise, como uma assunção pelo sujeito do “nada que ele é”, no nível do seu inconsciente, pois, em outros níveis da sua existência ele é múltiplas coisas. É isso que Lacan chamou de encontro com o real, ou, quando as vestimentas fálicas, com as quais nos sustentávamos, começam a se desfazer.
Porém, existe algo na estrutura do sujeito, que perdura. Há alguma coisa que não passa e que constitui a marca do próprio sujeito, seu sinthoma. Podemos dizer que o sinthoma é o que resiste do sujeito e em relação ao qual, só poderá reinventá-lo
O saber disso, nos torna menos tolos frente ao real, nos torna capazes de encontrar uma outra satisfação, além do campo fálico. Os restos não simbolizados pela operação analítica não serão absorvidos, permanecerão, para sempre, inconscientes, enodados ou não, na fantasia de cada um. Existem substâncias gozantes suplementares, objetos que se acrescentam como fontes de prazer além da ordem simbólica. Pode-se pensar em uma solidão própria do sinthoma.  Esse sinthoma é um gozo solitário, mas, a partir do qual se estabelecem novos laços com a vida.
 Lacan o situa no real e o define como: “o modo como cada um goza do inconsciente, enquanto o inconsciente o determina”.
Essa nova dimensão do sintoma, foi formulada por Lacan  trabalhando sobre a biografia de James Joyce, cuja escrita  se tornou  seu sinthoma, na medida que, por meio de sua escrita, Joyce se fez um nome. Cada um de nós também faz sua própria escrita  no decorrer da vida, de modo tal que se pode reconhecer quem  se é, pelo talho dessa escrita.
Lembro-me de Oscar Niemayer, por volta de seus 104 anos, fisicamente debilitado, mas continuava dando voz àquilo que perdurou,  perdura e perdurará mesmo depois de sua morte.  Sua voz já tão enfraquecida mais parecia um sopro  e as pessoas estavam ali para ouvi-lo. Ele ainda era, até o final, Oscar Niemayer. Um sinthoma?
Se  há algo no sujeito que perdura, também há em sua estrutura  uma variável, que escapa à determinação e impõe o novo. Determinação e liberdade, dois operadores no ato de se reinventar.
Enfim,  o simples fato de existir pode ter leveza e graça, indo além das vestimentas fálicas. Isso vem como um a mais, um gozo suplementar, um “plus”, que alguns, como os poetas, conseguem aceder: Tudo passará, “...eles passarão... eu passarinho”  no bem dizer do poeta Mario Quintana!
Respondo, agora, de forma mais elaborada a pergunta de meu neto:
- Ser velho, não é bom, Gabriel. Porém, o bom da velhice pode estar na possibilidade de se reinventar  e poder explorar recantos do nosso ser que ficaram à espera de uma nova montagem, uma outra leitura de nós mesmos, o novo sempre presente, pois, o que somos, de fato, não envelhece.

                                             Gilda Vaz Rodrigues