segunda-feira, 11 de abril de 2016

POR UMA LETRA QUE ESCREVA ÉTICA. Lampejos De Um Instante Vazio de Ser



Observamos que às vezes somos pegos de surpresa por uma Homofonia que, em conversas corriqueiras despertam uma curiosa dúvida coletiva, numa espécie de estranheza frente a um “como é mesmo que se escreve?  É com dois esses? Ou cê cedilha? ”
O inconsciente, estruturado como uma linguagem, faz suas manifestações assim, quase que como num truque de esconde/mostra faz suas travessuras numa espécie de falha ou de um tropeço que nos desperta. Por essa fresta de luz vamos ao enigmático conflito da nossa divisão de ser falante/falado, na inquietante condição de não sermos os reais detentores das palavras das quais somos emissários/destinatários. Há um desejo em causa aí.
Em “A Instância da Letra no Inconsciente”, um trabalho minucioso por sua visada literal e clínica, Lacan propõe uma problematização conceitual da Função da ‘Letra’, como possibilidade de uma transmissão no real da experiência analítica, por uma centelha que passasse entre audível e legível, com a particularidade de não anular a porção de ‘enigma’ com que o desejo inconsciente desafia nossa ‘filosofia natural’.
É então por uma elaboração lógica que Lacan articula a premissa de que o escrito é necessário à decifração de uma escuta que reescreva a gramática particular daquele som e re-enderece ao sujeito as assonâncias do que aí sutilmente se insinua.
Com esta perspectiva literal de quanto se perde de vida, quando não se cria as condições necessárias para dar lugar ao singular do desejo, Lacan traz à tona o paradoxo de um Escrito para ser Ouvido nas urdiduras de uma Palavra que se faça Ler.
Freud atravessou guerras, e teve que se exilar, em meio aos conluios tão evidenciados em seu insistente trabalho de alertar, sobre a íntima captura narcísica das paixões em que o Humano se deixa envolver, no silencio imantado do gozo dos ideais, pelo prazer de saber e de dominar o outro. Gozo que se instaura como um tempo anterior e imanente ao estatuto de humanidade. Tempo em que a linguagem se trespassa em Ser, como servidão à condição autônoma da liberdade estruturada como Neurose.
A Neurose é para Freud uma interrogação que o Ser coloca para o Sujeito, “lá de onde ele estava antes mesmo que o sujeito viesse ao mundo”.
Mas, contudo, há que se atualizar sempre pelo trabalho que nos faz seguir nas trilhas da experiência que ensina o indestrutível do desejo na subversão do sujeito e, mais ainda, perseverar no que for possível de se fazer saber da verdade daquilo que no humano grita através de seu escrito,
Voz a se ouvir na singularidade da letra que chega ao destino.   
Através do poeta, deixemo-nos atravessar pelo poema.

“Cruzou por mim, veio ter comigo, numa Rua da Baixa
Aquele homem mal vestido, pedinte por profissão que se lhe vê na cara,
Que simpatiza comigo e eu simpatizo com ele;
E reciprocamente, num gesto largo, transbordante, dei-lhe tudo quanto tinha
(exceto, naturalmente, o que estava na algibeira onde trago mais dinheiro:
Não sou parvo nem romancista russo, aplicado,
E romantismo, sim, mas devagar...)
Sinto uma simpatia por essa gente toda, sobretudo quando não merece simpatia.
Sim, eu sou também vadio e pedinte,
E sou-o também por minha culpa.
Ser vadio e pedinte não é ser vadio e pedinte:
É estar ao lado da escala social,
É não ser adaptável às normas da vida,
Às normas reais ou sentimentais da vida –
Não ser Juiz do Supremo, empregado certo, prostituta,
Não ser pobre a valer, operário explorado,
Não ser doente de uma doença incurável,
Não ser sedento da justiça, ou capitão da cavalaria,
Não ser, enfim, aquelas pessoas sociais dos novelistas
Que se fartam de letras porque têm razão para chorar lágrimas,
E se revoltam contra a vida social porque têm razão para isso supor.

Não: tudo menos ter razão!
Tudo menos importar-me com a Humanidade!
Tudo menos ceder ao humanitarismo!
De que serve uma sensação se há uma razão exterior para ela?

Sim, ser vadio e pedinte, como eu sou,
Não é ser vadio e pedinte, o que é corrente:
É ser isolado na alma, e isso é que é ser vadio,
É ter que pedir aos dias que passem, e nos deixem, e isso é que é ser pedinte.
Tudo mais é estúpido como um Dostoiévski ou um Gorki.
Tudo mais é ter fome ou não ter o que vestir.
E, mesmo que isso aconteça, isso acontece a tanta gente
Que nem vale a pena ter pena da gente a quem isso acontece.
Sou vadio e pedinte a valer, isto é, no sentido translato,
E estou-me rebolando numa grande caridade por mim.
Coitado do Álvaro de Campos!
Tão isolado na vida! Tão deprimido nas sensações!
Coitado dele, enfiado na poltrona da sua melancolia!
Coitado dele, que com lágrimas (autenticas) nos olhos, Deu hoje, num gesto largo, liberal e moscovita,
Tudo quanto tinha, na algibeira em que tinha pouco, àquele
Pobre que não era pobre, que tinha olhos tristes por profissão.
Coitado do Álvaro de Campos, com quem ninguém se importa!
Coitado dele que tem tanta pena de si mesmo!
E, sim, coitado dele!
Mais coitado dele que de muitos que são vadios e vadiam,
Que são pedintes e pedem,
Porque a alma humana é um abismo.
Eu é que sei. Coitado dele!
Que bom poder-me revoltar num comício dentro da minha alma!
Mas até nem parvo sou!
Nem tenho a defesa de poder ter opiniões sociais.
Não tenho, mesmo, defesa nenhuma: sou lúcido.
Não me queiram converter a convicção: sou lúcido.
Já disse: sou lúcido.
Nada de estéticas com coração: sou lúcido.
Merda! Sou lúcido.

A Plácida Face anônima de um morto.
Assim os antigos marinheiros portugueses,
Que temeram, seguindo, contudo, o mar grande do Fim,
Viram, afinal, não monstros nem grandes abismos,
Mas praias maravilhosas e estrelas por ver ainda.
[Fernando Pessoa – Poesias de Álvaro de Campos]
  
                                                                                                                                 Lucia Montes