sábado, 21 de maio de 2011

(...) POIS DE TUDO FICA UM POUCO....


(...) Pois de tudo fica um pouco.
Fica um pouco de teu queixo
no queixo de tua filha.
De teu áspero silêncio
um pouco ficou, um pouco
nos muros zangados,
nas folhas, mudas, que sobem.
Ficou um pouco de tudo
no pires de porcelana,
dragão partido, flor branca,
ficou um pouco
de ruga na vossa testa,
retrato.
(...) E de tudo fica um pouco.
Oh abre os vidros de loção
e abafa
o insuportável mau cheiro da memória.
(Resíduo)

                                                                                    Carlos Drummond de Andrade



Há sempre um suposto saber inerente a toda a interrogação sobre o saber.
 Portanto há uma transferência, que, universalmente, se instala sempre que houver uma questão a se formular. O endereçamento a algo ou a alguém, outro suposto saber de sua resposta é inevitável. Mas não é qualquer questão ou qualquer outro suposto saber que faz a estrutura da transferência que se instala em uma psicanálise.
Muito menos qualquer situação ou contingência que leva alguém a buscar uma análise.
 E finalmente, não é sempre que um sujeito entra em uma análise.
 Lacan diz, sobre o sujeito suposto saber, que, mais ainda, “pelo fato de que ele entra em análise, ele faz referência a um sujeito suposto saber melhor que os outros”.*
O chamativo é o “saber melhor que os outros”.
 Por que “melhor que os outros”?
Não se trata de identificá-lo ao seu analista.
O que então o torna melhor que os outros no que se refere ao saber suposto ao sujeito?

E ele diz mais: “é que, imanente ao próprio ponto de partida do movimento da procura psicanalítica, há este sujeito suposto saber, e como eu o dizia há pouco, suposto saber melhor ainda”.*
Que ponto de partida?
O quê sabe melhor ainda?
Trata-se de alguma mestria?
Os dados se colocam já na origem do jogo a cuja regra o analista se submete, jogo que ele já teria jogado, aposta que já teria feito e que, agora, “finge esquecer”.
 “Finge esquecer” que seu ato é causa de um novo processo, sustentando o que já “sabe” insustentável.
E o insustentável é o sujeito suposto saber, para que seja possível o único acesso a uma verdade da qual o sujeito será finalmente excluído.

Angela Porto

*Lacan, seminário XV, "O Ato psicanalítico"

quarta-feira, 4 de maio de 2011

uma insônia, um ombro travado, uma tosse, uma fisgada no peito....-'a'tores para uma Outra Cena -

A vida que nos leva no leito das palavras, com que interpretamos nossos desejos, não é exatamente a mesma vida que levamos, instalados nas margens estreitas do prazer almejado no dia a dia.
A insistência de signos comandados pelo princípio do prazer têm, quase sempre, a dimensão de um alerta que cifra alguma insatisfação naquilo que parecia ser o melhor deleite da situação em causa.  
Isso quer dizer que a rede dos significantes que nos são dados pela Cultura, deve se abrir a um mais além da realidade que a singularidade destes sinais-atores anunciam, no seu retorno, de um Real que teria escapado à representação do sujeito.
Uma outra realidade faz sua existência no cenário do nosso cotidiano aparentemente bem montado.
A linguagem penetra nas coisas, crava-lhes sulcos, revira-as, pode até vir a subverte-las. Mas uma vez que buscamos dar estatuto de humanidade à função da palavra, é preciso definir bem o campo da linguagem em que iremos interrogar o Sujeito.
Freud traz à cultura a proposição de um certo ‘primarismo’ na linguagem, nomeado por ele de processo primário, que já teria o Inconsciente como efeito de interrogação nessa anterioridade lógica da linguagem para o ser falante.
A captação do sujeito na rede dos significantes converge assim para um vazio. Vazio este bastante incômodo de abordar por se constituir através da encarnação do sujeito enquanto castração, e convertido no órgão da falta-ausência que é o falo.
Este vazio só é manejável porque cria o próprio continente que o envolve, destacando do próprio corpo os tais repetidos sinais-atores, restos testemunhas de uma falha na linguagem.
Repetição que, enquanto ato sintomático, imiscui a diferença levada ao significante e que nos atesta que o Sujeito é um efeito de linguagem.  
“Aquilo que foi, se repetido, difere, e se faz sujeito a ser reeditado” [Lacan],
pelo Ato do analista que extrai do vazio a função de causa que terá para o desejo.

Lúcia Montes.