domingo, 22 de agosto de 2010

"O Dinheiro", Robert Bresson, seus "modelos" e "vozes brancas"...

"Dinheiro", de Robert Bresson, seria estímulo ao debate sobre o "núcleo da repetição", este "esvaziado de afeto", "núcleo da transferência", tomado por mim, no último encontro de que participei no Tear 4, como o Eine Echte Liebe, um amor de verdade...um amor de real?

Robert Bresson é um dos raros cineastas que não fazem concessão de nenhuma ordem: seus filmes sempre foram rigorosamente realizados sem a utilização de atores profissionais e tudo o que os cerca (efeitos teatrais dos gestos, atitudes e vozes). Seu tom lírico, límpido, litúrgico se opõe ao drama psicológico e ao expressionismo. Comparados a Bresson, os realizadores em sua maioria, parecem meros funcionários da indústria do espetáculo. Tudo isso expIica, talvez, a dificuldade que ele encontrou para realizar seus filmes (doze em 40 anos).As adaptações de Robert Bresson - Les Dames du Bois de Boulogne, a partir de Diderot; Le Journal d' un Curé de Campagne e Mouchette, a Virgem Possuída, a partir de Georges Bernanos: Une Femme Douce e Quatro Noites de um Sonhador, a partir de Dostoievski, e L'Argent a partir de Tolstoi - são ao mesmo tempo muito e muito pouco fiéis. Bresson torna seus filmes mais "literários" que os romances nos quais ele se baseia. Por exemplo, não só não transpõe em diálogo as passagens do livro em que o pároco d' Ambricourt relata determinada conversa, como também impede que os verdadeiros diálogos (discurso direto) sejam interpretados como no cinema e no teatro habituais: ele pede a seus atores - Bresson utiliza o termo "modelo", já que eles não têm nada dos atores convencionais - para dizê-los numa entonação recto tono, monocórdia, sem inflexão: são as chamadas vozes brancas dos modelos bressonianos, que falam como se escutassem suas próprias palavras ditas por um outro. Neste sentido, os diálogos perdem o valor de discurso direto e passam a valer como discurso indireto livre (enunciação fazendo parte de um enunciado que depende de uma outra enunciação): eu falo e, quando falo, é como se um outro falasse. Lembremos, de passagem, que Dostoievski e Bernanos são mestres do discurso indireto livre. Dostoievski dotava seus personagens de estranhas vozes. Em Quatro Noites de um Sonhador um deles diz: "quando você fala, dá a impressão de estar lendo um livro". É o caso dos atores do Diário de um Pároco de Aldeia, que falam como se estivessem lendo o livro de Bernanos, apontando, assim, para a materialidade da escritura do romance.As vozes brancas, monocórdicas, dos modelos de Bresson, têm pelo menos duas funções: de um lado, deixam pressentir que o que é dito não remete a nenhum sujeito determinado, pelo contrário, o sujeito de enunciação cai numa relação de indeterminação. Por outro lado, apontam para a materialidade e a sonoridade do discurso.Cada um dos filmes de Bresson narra a "evolução" espiritual de um personagem confrontada com os acontecimentos (situação ou história). Mas o que interessa a Bresson é a parte do acontecimento que transborda a sua realização, ou seja, a determinação espiritual. A história é horizontal, enquanto a determinação espiritual é vertical. O personagem bressoniano deve afrontar o acontecimento do interior; ele deve merecê-lo transformando-o no seu eterno contemporâneo. É o que Charles Peguy chamava de "internet' (eterno).O encontro do personagem e do acontecimento, a situação ou história, se realiza no espaço e no tempo, no presente abstrato e contínuo. Mas o verdadeiro encontro - a fé, a graça, o sacrifício, o amor - é a parte do acontecimento que não se confunde com o estado de coisas determinado (situações, corpos, enunciados etc.). 0 verdadeiro encontro esta sempre para acontecer ao mesmo tempo em que sempre aconteceu. "Amar", diz Guimarães Rosa, "é se unir a uma pessoa futura, única, a mesma do passado".No cinema de Bresson, a determinação espiritual13 se exprime através de um espaço regido pela fragmentação ou "espaço qualquer" (Gilles Deleuze). Deleuze mostrou em que consiste a novidade do espaço qualquer bressoniano. Trata-se de um espaço ou imagem que não prolonga ao infinito um estado de coisas e que não se encadeia segundo as relações sensório-motoras que o homem estabelece com o mundo. O "espaço qualquer" resulta de uma alternativa entre um estado de coisas e a virtualidade que o ultrapassa: é a parte do acontecimento que não se reduz ao estado de coisas determinado; é o mistério desse presente recomeçado acima descrito.

"No cinema de Bresson, os espaços, corpos e objeto não são mostrados inteiramente, eles são submetidos à fragmentação. A fragmentação para Bresson "é indispensável se não quisermos cair na representação. Ver os seres e as coisas em suas partes separadas, isolar essas partes. Torná-las independentes a fim de lhes dar uma nova dependência".A nova dependência significa que o cinema adquire uma nova dimensão perceptiva e afetiva: de um lado, o espaço se torna pura conjunção virtual, puro lugar do possível e, de outro, ele exprime o afeto enquanto potencialidade pura. Os espaços fragmentados são submetidos a encadeamentos rítmicos e tácteis variáveis, cuja conexão é dada pelo espírito, a alternância do espírito ou a escolha (Deleuze).

Pascal, Kierkegaard, Peguy, Bernanos e Bresson formam uma linha de pensadores moralistas e religiosos que se opõem à moral e à religião. Segundo Deleuze, com eles se desenvolve uma idéia muito interessante: a alternativa ou a escolha do espírito remete ao modo de existência daquele que escolhe e não ao combate, à oposição e à alternância do bem e do mal.
Para Bresson, a infâmia e a hipocrisia estão tanto do lado do mal quanto do bem, pois o homem do mal e o homem da incerteza só podem escolher na medida em que negam que tenham escolha, seja em virtude de uma necessidade moral ou religiosa, seja em virtude de um estado de coisas ou situação qualquer. A esses três tipos de personagens, Bresson opõe o personagem da escolha autêntica: o crente ou o homem de determinação espiritual, que escolhe escolher e, por isso mesmo, exclui todos os modos de vida que consistem em não ter escolha.
No seu último filme, “O Dinheiro” (1983), o diretor dispõe do controle completo de sua arte. Ao contar a história que gira em torno de uma nota falsa, Bresson aborda os seus principais temas (escolha, graça, predestinação) da forma com que ficou conhecido: suprimindo tudo aquilo que considera como desnecessário, para poder encontrar a essência e o inesperado por trás das imagens. E o fez nesse filme de forma impressionante, pois aqui, cada plano - visto como fragmentos - traz em si a sua causa e a sua conseqüência, o passado e o futuro, de tal modo que cada momento da cadeia de acontecimentos que cria é absoluto. A única maneira possível de liga-los é através das ousadas elipses visuais e sonoras.
(Pesquisa realizada na internet e notas do trabalho de André Parente, UFRJ )

Vale a sugestão de trabalho, para o Ocios do Ofício ?


Angela Porto

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