terça-feira, 15 de abril de 2014

O BOM DA VELHICE - uma crônica psicanalítica

Jazz de Matisse
                                                                                           
É isso mesmo!  Pretendo explorar um pouco o tema da velhice pelo lado bom.
Não se trata de um complexo de Poliana, nem de uma ironia a la Voltaire, em Cândido, o otimista. Ainda não sei bem, que nome dar a este escrito, mas... vamos lá.
Em um momento de descontração ao lado de meus netos, meu neto Gabriel me surpreende com uma pergunta: “Vó... é bom ser velha?”
Ainda sob o impacto da pergunta tão simples, verdadeira, sem nenhum preconceito, uma pergunta de pura curiosidade infantil, provavelmente evocada pela alegria que eu devia estar transmitindo de estar ali com eles  envolvida nas brincadeiras daquele mundo infantil, respondo sem pensar muito:
- É bom, é muito bom.
Não estava mentindo, naquele momento essa resposta era tão verdadeira quanto a própria pergunta.
Então... uma nova pergunta:
“Quais são as vantagens de ser velho?”
Em clima de brincadeira respondo:
- Ah! Podemos passar na frente nas filas, pegar o metrô sem pagar, pagar meia entrada nos cinemas e teatros... e, ficamos por aí na conversa que serviu de mote para muitas brincadeiras no decorrer da viagem que fazíamos juntos, principalmente nas situações em que essas vantagens se apresentavam. Ele olhava para mim, com um olhar de cumplicidade, como se dissesse “vai nessa vó”, ou “passa na frente”.
Algumas vezes ainda me recordo dessa pergunta que me pegou de surpresa, principalmente pelo fato de eu ainda não me sentir integrante dessa categoria, a dos velhos, embora, oficialmente, já esteja chegando lá.
Outras vantagens vão se perfilando na medida que foco nessa questão: Quais seriam as vantagens da velhice? Haveria mesmo alguma vantagem?
Tempos depois, leio uma entrevista da atriz Meryl Streep à uma revista,  na qual,  questionada por estar fazendo comédias românticas, meio água com açúcar, ela, que já fez filmes como A escolha de Sofia e tantos outros filmes de arte premiadíssimos, responde:
-“Depois que fiz 60 anos, não tenho  de provar mais nada à ninguém, quero fazer o que me dá prazer e acho divertido.” (Evidentemente, sem deixar de ser Meryl Streep)
Pensei comigo: mais uma vantagem da velhice:  já ter dado as provas que a vida  exigiu. Trata-se, agora, de um outro “fazer” que supõe uma liberdade e ao mesmo tempo um ato de se autorizar fazer diferente.
Sem procurar, vou encontrando, em minhas leituras algumas formulações e exemplos que fundamentam essa introdução, aparentemente simples, com que  comecei este  texto.
Parto da proposição de que a vida e a psicanálise caminham na mesma direção: o real.
O real inicialmente definido por Lacan como o impossível de ser simbolizado, correlativo à experiência do trauma, será, em seu último ensino, tomado como um campo de gozo, um campo sem lei, mas que tem uma lógica própria que inclui o corpo como suporte do gozo.
Como o corpo fala na velhice!
Na psicanálise o corpo se revela como puro acontecimento, opaco ao sentido, e se manifesta, principalmente, por meio da angústia.
Numa análise, o corpo  permanece deitado no divã, posição de exclusão e inclusão, num só tempo, numa posição tão específica do trabalho analítico, que o próprio divã se tornou um signo  do “fazer análise”.
Durante um tempo desse trabalho,  o corpo pode parecer ignorado ou alheio à riqueza das associações que povoam quase  todo o campo da experiência analítica. Mas, não todo.
A entrada em cena do corpo é correlativa à entrada em cena do gozo. É aí que se dá toda a diferença. Aquele que percorreu a via de seu inconsciente, que aprendeu a escutá-lo, a lê-lo, a levar em conta a existência de um campo do real que lhe impõe a extrema solidão do Um-sozinho que se é na trama da vida, terá mais recursos para se a ver com esse corpo que fala cada vez mais alto.  Isto por que a experiência analítica  é uma experiência que lida com o dualismo vida e morte ao nível da própria estrutura do sujeito.
E que recursos teria o sujeito frente ao real cada vez mais presente na medida que a vida passa?
 Lacan formulará o conceito de sinthoma a partir das marcas de gozo que comemoram a conjunção do Um sozinho e o corpo.
Não sei se tudo isso parece muito abstrato, afinal, o que é o sinthoma?
Tal como a vida, a psicanálise vai produzindo uma desconstrução, um desmantelamento daquilo que nos serviu de suporte durante algum tempo. As coisas caem, passam e se perdem. Se pensarmos pela via do phalus, esse caminho acarreta uma destituição subjetiva, uma perda de potência fálica, um reencontro com o horizonte desabitado do ser. Isso vai ao encontro do que é formulado sobre o final de análise, como uma assunção pelo sujeito do “nada que ele é”, no nível do seu inconsciente, pois, em outros níveis da sua existência ele é múltiplas coisas. É isso que Lacan chamou de encontro com o real, ou, quando as vestimentas fálicas, com as quais nos sustentávamos, começam a se desfazer.
Porém, existe algo na estrutura do sujeito, que perdura. Há alguma coisa que não passa e que constitui a marca do próprio sujeito, seu sinthoma. Podemos dizer que o sinthoma é o que resiste do sujeito e em relação ao qual, só poderá reinventá-lo
O saber disso, nos torna menos tolos frente ao real, nos torna capazes de encontrar uma outra satisfação, além do campo fálico. Os restos não simbolizados pela operação analítica não serão absorvidos, permanecerão, para sempre, inconscientes, enodados ou não, na fantasia de cada um. Existem substâncias gozantes suplementares, objetos que se acrescentam como fontes de prazer além da ordem simbólica. Pode-se pensar em uma solidão própria do sinthoma.  Esse sinthoma é um gozo solitário, mas, a partir do qual se estabelecem novos laços com a vida.
 Lacan o situa no real e o define como: “o modo como cada um goza do inconsciente, enquanto o inconsciente o determina”.
Essa nova dimensão do sintoma, foi formulada por Lacan  trabalhando sobre a biografia de James Joyce, cuja escrita  se tornou  seu sinthoma, na medida que, por meio de sua escrita, Joyce se fez um nome. Cada um de nós também faz sua própria escrita  no decorrer da vida, de modo tal que se pode reconhecer quem  se é, pelo talho dessa escrita.
Lembro-me de Oscar Niemayer, por volta de seus 104 anos, fisicamente debilitado, mas continuava dando voz àquilo que perdurou,  perdura e perdurará mesmo depois de sua morte.  Sua voz já tão enfraquecida mais parecia um sopro  e as pessoas estavam ali para ouvi-lo. Ele ainda era, até o final, Oscar Niemayer. Um sinthoma?
Se  há algo no sujeito que perdura, também há em sua estrutura  uma variável, que escapa à determinação e impõe o novo. Determinação e liberdade, dois operadores no ato de se reinventar.
Enfim,  o simples fato de existir pode ter leveza e graça, indo além das vestimentas fálicas. Isso vem como um a mais, um gozo suplementar, um “plus”, que alguns, como os poetas, conseguem aceder: Tudo passará, “...eles passarão... eu passarinho”  no bem dizer do poeta Mario Quintana!
Respondo, agora, de forma mais elaborada a pergunta de meu neto:
- Ser velho, não é bom, Gabriel. Porém, o bom da velhice pode estar na possibilidade de se reinventar  e poder explorar recantos do nosso ser que ficaram à espera de uma nova montagem, uma outra leitura de nós mesmos, o novo sempre presente, pois, o que somos, de fato, não envelhece.

                                             Gilda Vaz Rodrigues


4 comentários:

  1. Belíssimo ensaio com tema tão em moda e provocante... Eu também ainda não" me sinto integrante dessa categoria, a dos velhos, embora", também "oficialmente, já esteja chegando lá", no entanto a sociedade já me taxa de velho há muito tempo. Mas convivo muito bem com isso, hoje nos meus 57 anos, com muita saúde e sonhos para realizar, dentre eles, concluir minhas pesquisas e publicar o livro sobre a TV ITACOLOMI, UM DOS PILARES DA TELEVISÃO BRASILEIRA.
    Abraços e obrigado por me proporcionar leitura tão agradável e refletiva.

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  2. Só não viverá a velhice, quem morrer antes, o que ninguém deseja. Então, é se deliciar dessa leitura e preparar para curtir uma boa velhice. Afinal, no nosso querido e varonil Brasil, passou dos 30 já está com um pezinho lá... Ótima e agradável crônica. Obrigado, Angela Porto, obrigado Gilda Vaz Rodrigues! Antonio Elizeu

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  3. Disse o Baudelaire em 1846: Vocês podem viver três dias sem pão; - sem poesia, jamais; e os que entre vocês dizem o contrário se enganam: eles não se conhecem. Bom dia, amigos e amigas.Poesia é o verso e o anverso e, na linha grega, a construção com as próprias mãos.

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  4. Belo texto Gilda! Como tudo, ser velho é bom e ruim. A gente vai catando o bom pelo caminho. Abração.

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