Jazz de Matisse |
É isso mesmo! Pretendo explorar um pouco o tema da velhice
pelo lado bom.
Não se trata
de um complexo de Poliana, nem de uma ironia a la Voltaire, em Cândido, o
otimista. Ainda não sei bem, que nome dar a este escrito, mas... vamos lá.
Em um
momento de descontração ao lado de meus netos, meu neto Gabriel me surpreende
com uma pergunta: “Vó... é bom ser velha?”
Ainda sob o
impacto da pergunta tão simples, verdadeira, sem nenhum preconceito, uma
pergunta de pura curiosidade infantil, provavelmente evocada pela alegria que
eu devia estar transmitindo de estar ali com eles envolvida nas brincadeiras daquele mundo
infantil, respondo sem pensar muito:
- É bom, é
muito bom.
Não estava
mentindo, naquele momento essa resposta era tão verdadeira quanto a própria
pergunta.
Então... uma
nova pergunta:
“Quais são
as vantagens de ser velho?”
Em clima de
brincadeira respondo:
- Ah!
Podemos passar na frente nas filas, pegar o metrô sem pagar, pagar meia entrada
nos cinemas e teatros... e, ficamos por aí na conversa que serviu de mote para
muitas brincadeiras no decorrer da viagem que fazíamos juntos, principalmente
nas situações em que essas vantagens se apresentavam. Ele olhava para mim, com
um olhar de cumplicidade, como se dissesse “vai nessa vó”, ou “passa na
frente”.
Algumas
vezes ainda me recordo dessa pergunta que me pegou de surpresa, principalmente
pelo fato de eu ainda não me sentir integrante dessa categoria, a dos velhos,
embora, oficialmente, já esteja chegando lá.
Outras
vantagens vão se perfilando na medida que foco nessa questão: Quais seriam as
vantagens da velhice? Haveria mesmo alguma vantagem?
Tempos
depois, leio uma entrevista da atriz Meryl Streep à uma revista, na qual,
questionada por estar fazendo comédias românticas, meio água com açúcar,
ela, que já fez filmes como A escolha de
Sofia e tantos outros filmes de arte
premiadíssimos, responde:
-“Depois que
fiz 60 anos, não tenho de provar mais
nada à ninguém, quero fazer o que me dá prazer e acho divertido.” (Evidentemente,
sem deixar de ser Meryl Streep)
Pensei comigo:
mais uma vantagem da velhice: já ter
dado as provas que a vida exigiu. Trata-se,
agora, de um outro “fazer” que supõe uma liberdade e ao mesmo tempo um ato de
se autorizar fazer diferente.
Sem
procurar, vou encontrando, em minhas leituras algumas formulações e exemplos que
fundamentam essa introdução, aparentemente simples, com que comecei este
texto.
Parto da
proposição de que a vida e a psicanálise caminham na mesma direção: o real.
O real
inicialmente definido por Lacan como o impossível de ser simbolizado,
correlativo à experiência do trauma, será, em seu último ensino, tomado como um
campo de gozo, um campo sem lei, mas que tem uma lógica própria que inclui o
corpo como suporte do gozo.
Como o corpo
fala na velhice!
Na
psicanálise o corpo se revela como puro acontecimento, opaco ao sentido, e se
manifesta, principalmente, por meio da angústia.
Numa análise,
o corpo permanece deitado no divã,
posição de exclusão e inclusão, num só tempo, numa posição tão específica do
trabalho analítico, que o próprio divã se tornou um signo do “fazer análise”.
Durante um
tempo desse trabalho, o corpo pode
parecer ignorado ou alheio à riqueza das associações que povoam quase todo o campo da experiência analítica. Mas,
não todo.
A entrada em
cena do corpo é correlativa à entrada em cena do gozo. É aí que se dá toda a
diferença. Aquele que percorreu a via de seu inconsciente, que aprendeu a
escutá-lo, a lê-lo, a levar em conta a existência de um campo do real que lhe
impõe a extrema solidão do Um-sozinho que se é na trama da vida, terá mais
recursos para se a ver com esse corpo que fala cada vez mais alto. Isto por que a experiência analítica é uma experiência que lida com o dualismo
vida e morte ao nível da própria estrutura do sujeito.
E que
recursos teria o sujeito frente ao real cada vez mais presente na medida que a
vida passa?
Lacan formulará o conceito de sinthoma a partir das marcas de gozo que
comemoram a conjunção do Um sozinho e o corpo.
Não sei se
tudo isso parece muito abstrato, afinal, o que é o sinthoma?
Tal como a
vida, a psicanálise vai produzindo uma desconstrução, um desmantelamento
daquilo que nos serviu de suporte durante algum tempo. As coisas caem, passam e
se perdem. Se pensarmos pela via do phalus, esse caminho acarreta uma
destituição subjetiva, uma perda de potência fálica, um reencontro com o
horizonte desabitado do ser. Isso vai ao encontro do que é formulado sobre o
final de análise, como uma assunção pelo sujeito do “nada que ele é”, no nível
do seu inconsciente, pois, em outros níveis da sua existência ele é múltiplas
coisas. É isso que Lacan chamou de encontro com o real, ou, quando as
vestimentas fálicas, com as quais nos sustentávamos, começam a se desfazer.
Porém, existe
algo na estrutura do sujeito, que perdura. Há alguma coisa que não passa e que
constitui a marca do próprio sujeito, seu sinthoma.
Podemos dizer que o sinthoma é o que
resiste do sujeito e em relação ao qual, só poderá reinventá-lo
O saber
disso, nos torna menos tolos frente ao real, nos torna capazes de encontrar uma
outra satisfação, além do campo fálico. Os restos não simbolizados pela
operação analítica não serão absorvidos, permanecerão, para sempre,
inconscientes, enodados ou não, na fantasia de cada um. Existem substâncias
gozantes suplementares, objetos que se acrescentam como fontes de prazer além da
ordem simbólica. Pode-se pensar em uma solidão própria do sinthoma. Esse sinthoma é um gozo solitário, mas, a
partir do qual se estabelecem novos laços com a vida.
Lacan o situa no real e o define como: “o modo
como cada um goza do inconsciente, enquanto o inconsciente o determina”.
Essa nova
dimensão do sintoma, foi formulada por Lacan
trabalhando sobre a biografia de James Joyce, cuja escrita se tornou seu sinthoma, na medida que, por meio de sua
escrita, Joyce se fez um nome. Cada um de nós também faz sua própria
escrita no decorrer da vida, de modo tal
que se pode reconhecer quem se é, pelo
talho dessa escrita.
Lembro-me de
Oscar Niemayer, por volta de seus 104 anos, fisicamente debilitado, mas
continuava dando voz àquilo que perdurou, perdura e perdurará mesmo depois de sua
morte. Sua voz já tão enfraquecida mais
parecia um sopro e as pessoas estavam
ali para ouvi-lo. Ele ainda era, até o final, Oscar Niemayer. Um sinthoma?
Se há algo no sujeito que perdura, também há em
sua estrutura uma variável, que escapa à
determinação e impõe o novo. Determinação e liberdade, dois operadores no ato
de se reinventar.
Enfim, o simples fato de existir pode ter leveza e
graça, indo além das vestimentas fálicas. Isso vem como um a mais, um gozo
suplementar, um “plus”, que alguns, como os poetas, conseguem aceder: Tudo
passará, “...eles passarão... eu passarinho” no bem dizer do poeta Mario Quintana!
Respondo,
agora, de forma mais elaborada a pergunta de meu neto:
- Ser velho,
não é bom, Gabriel. Porém, o bom da velhice pode estar na possibilidade de se
reinventar e poder explorar recantos do
nosso ser que ficaram à espera de uma nova montagem, uma outra leitura de nós
mesmos, o novo sempre presente, pois, o que somos, de fato, não envelhece.
Gilda Vaz Rodrigues
Belíssimo ensaio com tema tão em moda e provocante... Eu também ainda não" me sinto integrante dessa categoria, a dos velhos, embora", também "oficialmente, já esteja chegando lá", no entanto a sociedade já me taxa de velho há muito tempo. Mas convivo muito bem com isso, hoje nos meus 57 anos, com muita saúde e sonhos para realizar, dentre eles, concluir minhas pesquisas e publicar o livro sobre a TV ITACOLOMI, UM DOS PILARES DA TELEVISÃO BRASILEIRA.
ResponderExcluirAbraços e obrigado por me proporcionar leitura tão agradável e refletiva.
Só não viverá a velhice, quem morrer antes, o que ninguém deseja. Então, é se deliciar dessa leitura e preparar para curtir uma boa velhice. Afinal, no nosso querido e varonil Brasil, passou dos 30 já está com um pezinho lá... Ótima e agradável crônica. Obrigado, Angela Porto, obrigado Gilda Vaz Rodrigues! Antonio Elizeu
ResponderExcluirDisse o Baudelaire em 1846: Vocês podem viver três dias sem pão; - sem poesia, jamais; e os que entre vocês dizem o contrário se enganam: eles não se conhecem. Bom dia, amigos e amigas.Poesia é o verso e o anverso e, na linha grega, a construção com as próprias mãos.
ResponderExcluirBelo texto Gilda! Como tudo, ser velho é bom e ruim. A gente vai catando o bom pelo caminho. Abração.
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