sábado, 27 de abril de 2013

Como e quando a psicanálise se transmite? ...questões para um encontro





Escrever. Não posso.
                                                           Ninguém pode.
                                                           É preciso dizer: não se pode.
                                                           E se escreve.
                                                                       Marguerite Duras in: Escrever, 1994.

Quando o pintor Fontana fundou o movimento “espacialista” italiano, passando a atacar telas  brancas com golpes de giletes, depois de uma longa carreira, aureolada por museus e salas burguesas, seu  fornecedor de telas, em Milão, fez-lhe observar um dia que, ele mesmo, o próprio fornecedor ,ou, na verdade, qualquer um, poderia fazer o mesmo, produzindo as “giletadas”, que vinham fazendo   a fama do mestre. Fontana, bem humorado, respondeu: “Certamente, mas as que você produziria seriam falsas.”(Referência retirada da anedota citada no editorial do Boletim da APPOA, ano 2, no5, 1991)
Resposta pertinente, pois a arte consiste no ato, mais que na obra.
Da mesma forma, Marcel Duchamp (1887-1968), vanguardista de nosso século, cujo trabalho consistia no gesto de, tomado um artefato industrial de uso comum (é conhecida a obra do artista feita de um mictório) transformá-lo num ready-made. O objeto, uma vez assinado, transformava-se em obra.. A mestria da qual ele é testemunha não é a da forma, mas a do ato que, arrancando-o do uso comum, cotidiano, o institui, deixando perplexo o observador! Assim, também, os objetos depois de instalados em museus, vão aos poucos empalidecendo seus efeitos...
Alguma relação com a interpretação, a suspensão do recalque, o ato analítico?
Certamente levar uma peça de banheiro para uma exposição de arte, atrai polêmica! Um mictório não é uma peça bonita por si só, embora isso possa ser discutido, mas Duchamp buscava, na arte, o mais além do belo. Como ele mesmo se expressa:
[..].transformar todas as manifestações externas de energia, em excesso ou desperdiçadas, como por exemplo...o crescimento dos cabelos ou das unhas, a queda da urina ou das fezes, os movimentos impulsivos do medo, do assombro, do riso, da queda da lágrima, os gestos das mãos, o olhar frio, o ronco ao se dormir, a ejaculação, o vômito, o desmaio, etc.

Dizem que Duchamp, depois de oferecer aos seus convidados  preciosos charutos assinados por ele – imaginem que estes já os sonhavam em redomas de vidro ou vendidos a colecionadores – impunha que eles o fumassem na ocasião.

Não pretendemos ensinar aos analistas o que é pensar. Eles o sabem. Mas não é que o tenham compreendido por si. Aprenderam essa lição com os psicólogos. O pensamento é uma tentativa de ação, repetem eles gentilmente. (O próprio Freud cai nessa esparrela, o que não o impede de ser um pensador rigoroso e cuja ação se consuma no pensamento.) A bem da verdade o pensamento dos analistas é uma ação que se desfaz. O que deixa certa esperança de que, se os fizermos pensar nisso, eles, ao retomá-la, acabem repensando-a.( LACAN, J. A direção do tratamento. In: LACAN, J. Escritos, Rio da Janeiro, Jorge Zahar, 1998, p. 622.)

Poder-se-ia dizer que a regra fundamental, da associação “livre”, da escuta, e, não, a ausculta do analista, como aquele que sustenta a demanda, introduz a possibilidade de a análise, como deslizamento significante, tornar-se passível de ser propagada, difundida, isto é, multiplicada, reproduzida por geração, dilatada, desenvolvendo-se por contágio, proximidade.Da mesma forma, se, com a oferta de escutar, o analista cria a demanda de o sujeito se dizer, de “ser curado, de ser revelado a si mesmo, de ser levado a conhecer a psicanálise, de ser habilitado como analista,” poder-se-ia, como faz questão de enfatizar Lacan, conseguir o que, no comércio comum, tanto se pretenderia realizar!
Conseguiríamos dizer que a psicanálise, sim, com certeza, se pode divulgar! Vulgarizá-la, criar demandas com ofertas a granel e no atacado, na mídia, e ao modo quick de nosso tempo, em todo canto e lugar. Basta acreditar na simples regra analítica como motor da transferência, basta acreditar no amor e na demanda que nunca há de cessar, já que o sujeito nunca fez outra coisa além de demandar? Aliás, o sujeito só se constituiu e só pôde viver por isso?
Como e quando, entretanto, a psicanálise se transmite? O que dela se escreve?     

O quê e como um analista transmite, então, mais além da 'divulgação', mais além da 'propagação', mais além do amor e dos significantes, do 'intercâmbio', da 'dialética da interlocução', mais além do 'pensamento', pois ele só o é – o analista –  quando não pensa?
Ângela Porto

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