...“Chama-se a ‘castração’, que deve ser tomada em sua dimensão de experiência subjetiva, na medida em que canto algum, se não for por esta via, o sujeito não se realiza. Refiro-me ao sujeito, claro.Esse sujeito não se realiza exatamente senão enquanto falta, o que quer dizer que a experiência subjetiva desemboca nisto que simbolizamos por –phi.... e que esse ‘existe’ em questão, esse ‘existe’ de uma falta, é preciso encarná-lo no que lhe dá efetivamente seu nome: a castração. Trata-se, portanto de uma experiência limitada, de uma experiência lógica e, afinal, por que não? Já que, por um instante, saltamos para o outro plano, para o plano da relação do vivo a si mesmo, que nós só abordamos pelo esquema dessa aventura subjetiva, é preciso lembrar aqui que, do ponto de vista do vivo, tudo isso, afinal, pode ser considerado como um artefato”.(Lacan,J. Seminário XV: O Ato analítico - Seminário de 17 de janeiro de 1968. Pg. 98.)<쏤ˊ>쏤ˊ>
A experiência subjetiva de castração no percurso analítico será esse momento lógico do discurso quando as palavras acabam. Chega-se a um discurso sem palavras realizado através do esvaziamento do registro imaginário, pela via desta operação lógica, endereçado ao SSS analista. O saber discursivo tem um ponto de basta, que retorna o endereçamento a si mesmo. É nesse momento que saltamos para o plano da relação do vivo a si mesmo. A verdade do corpo vivo emerge, algo da materialidade do vivo-real fora da cadeia significante simbólica - esse saber hereditário instintual. Ao ponto de basta do saber (o saber inclui um não-saber) se abre à dimensão do plano da verdade (sexo e morte) – que não se articula ao saber, mas que pela descontinuidade a ele abre-se uma nova perspectiva lógica: um saber/verdade não-todo possível de articulação no discurso.
O significado da palavra artefato é: produto ou obra do trabalho mecânico, que podemos acrescentar - produto ou obra do trabalho mecânico que opera a linguagem.
A experiência lógica é um artefato linguístico para o vivo, que conseguiu se superar enquanto vivo real se desdobrando na possibilidade da linguagem simbólica. A linguagem e a representação psíquica são um artefato, que possibilitam a abordagem do vivo através de sua aventura subjetiva, o sujeito-vivo 'intocado pelos efeitos radicais da linguagem’ (Ângela Porto in http://tear4-psicanalise.blogspot.com/2011/09/o-campo-limitado-que-e-o-da-psicanalise.html ) se lança em sua aventura...
Inicialmente alienado, e pós-análise, funcionando como objeto ‘a’, causa de desejo – sujeito barrado que se realizou como sujeito da castração. Durante o trajeto analítico, a falta inicial se transmutará em perda. Durante a passagem do funcionamento do aparelho psíquico do processo primário, para a tradução linguística necessária - processo secundário, se perderá muita informação sensória (percebida pelos 5 sentidos) e motora, impossíveis de tradução – os objetos ‘a’. Esses serão o resultado desta passagem pelo filtro da realidade psíquica. O sujeito do inconsciente, tal como temos acesso, será produto dessa passagem (estruturado como linguagem) e é nesse momento onde restam inúmeros ‘a’ que o sujeito se testemunhará enquanto perda – objeto ‘a’.
O objeto ‘a’ enquanto resto de uma operação linguística evidencia a dissimetria entre dois campos/registros/planos: o psiquismo e o corpo, o sujeito e o outro, o particular e o universal, etc... Ao mesmo tempo, se o pensarmos como intervalo, como espaço da descontinuidade, aí estará a possibilidade da articulação entre dois campos heterogêneos, articulação que sempre aponta para a impossibilidade da complementaridade.
É de todo des-encontro entre campos/registros/planos heterodoxos que resulta a perda de informação não possível de ser traduzida de um registro para o outro. Esses restos não traduzíveis, não articuláveis são os objetos pequenos ‘a’. E sua função, ao final da análise, esvaziados de sua 'substância', é a de promover o movimento.
Nesse substrato de objetos ‘a’, o sujeito se vale das articulações possíveis para funcionar como sujeito falante, entendendo o resultado da linguagem como uma tentativa, uma possibilidade de ser. Ser enquanto efeito de linguagem, de um significante que o representa para outro significante. Isso modifica sua posição enquanto falante, já que não existe uma só maneira de se falar e escutar algo. O equívoco intrínseco inerente da linguagem está a serviço do ser... Isso é libertador porque põe em pauta o que está fora linguagem e as possibilidades incomensuráveis para a articulação significante, apesar das perdas e graças a elas. O ser se lança em sua a-ventura subjetiva significante a-cerca dos objetos ‘a’, a-través do artefato linguístico...
Freud nos lembrou dos 3 grandes golpes sofridos pela humanidade em seu narcisismo: o golpe cosmológico, quando Copérnico (Sec. XV) desfaz o pensamento de que a terra era o centro do universo; o golpe biológico, quando Darwin (final Sec. XIX) demonstra que o homem não é superior aos animais e sim descende deles; e o golpe psicológico, onde Freud (início Sec. XX) retira do homem sua posição de consciência, dono de si, dizendo: “O eu não é o senhor em sua própria casa”, mostrando que a sexualidade e o inconsciente não são passíveis de domínio e que são eles que determinam a vida psíquica.*
Lacan vem nos lembrar, com a aventura significante subjetiva, esse redimensionamento humano através do reconhecimento de seu funcionamento via perdas, pelo radical golpe linguístico do significante... Podemos ser, enquanto efeito de linguagem...
Simone Caporali Ribeiro
Nenhum comentário:
Postar um comentário