terça-feira, 19 de outubro de 2010

O AMOR NÃO TEM SEXO...??

Stephen Frears,diretor
Assisti, há tempos, o filme “O amor não tem sexo” – Prick up your ears, Inglaterra – 1986 – que mostra a relação tumultuada e, ao mesmo tempo, sintonizada, do dramaturgo inglês Joe Orton com Keneth Halliwell, escritor. O diretor Stephen Frears apresenta com maestria a evolução do encontro amoroso ao ódio, até a culminância do sexo, na sua violência de morte, na cena final do assassinato de Joe por Keneth e posterior suicídio deste. É Keneth quem diz, antes de se matar por envenenamento:
_ "Devo tê-lo amado muito, pois o escolhi para me matar”.  
Frase, certamente enigmática ! O que se pode dizer do amor em psicanálise? E o amor não tem sexo? Outra afirmação intrigante! Aqui se estaria falando de que? Amor e sexo se referem a dois terrenos diferentes que não se confundem, não se sobrepõem? O "amor não tem sexo”, podemos pensá-lo, também quanto à diferença anatômica dos sexos, à naturalidade ou à problemática da relação entre os sexos e a sugestão que tal título faz de que, para o amor, a sexuação dos parceiros é acessória?
Lacan, no Seminário XX, p. 37, diz:
“(...) o que articulei precisamente no ano passado foi que quando a gente ama, não se trata de sexo”.
Quanto ao amor de transferência, “se quando se ama não se trata de sexo”, a que isso pode levar em termos do que a análise tem como fim?. Muitas perguntas...muito trabalho!

No Seminário XX, Lacan o articula segundo a distinção entre dois registros: o do gozo e do significante e o do amor e do semblante.Ele diz que é da falha que há no registro do gozo, da não existência do Outro sexuado como tal, que parte a demanda do amor.
O amor, entretanto, é recíproco e o gozo é por definição não recíproco.
Se o amor pretende efetivamente suprir a falta da relação sexual, a relação que ele estabelece não é “sexual”, porque o que promove é a possibilidade da relação de um sujeito a outro sujeito e não a de um sujeito a um corpo. O amor é fundamentalmente assexuado. Se o amor pode surgir é porque, desta falta, na relação de sujeito a sujeito, estabelece-se a relação possível de um saber de cada um suposto ao outro.
O amor visa o Outro mas nunca atinge senão o semblante, ao qual tenta dar consistência. Mas qual é esse conteúdo, este ser que faz com que a imagem se sustente? A análise demonstra que ele se reduz ao objeto a. A imagem do outro só recobre “a” com o qual não há união possível, pelo menos sexuada, já que o objeto é a-sexuado.
Em se tratando do real, o amor se reduz à relação com a fantasia porque, de um lado, se coloca o objeto a, e de outro lado, o muro que esse objeto levanta diante da apreensão do ser, limite que Lacan chama de a-muro. É o que faz o amor se reunir à pulsão de morte no que ele tem de mais destrutivo. Freud já apontava em Pulsões e suas Vicissitudes. Quando acaba o amor, surge o ódio.A conjunção do amor e da morte ultrapassa certamente o que seria “querer seu bem”.

Serge André, em “O Que Quer Uma Mulher”, diz:
“Com efeito, ao chocar-se com o a-muro, o sujeito vê aumentar sua exasperação, pois do ser amado(a) nunca obterá mais que alguns signos ou alguns restos. Como então capturá-lo senão reduzindo-o a estado de cadáver, ou bem devorando-o, ingurgitando-o realmente. Como melhor possuí-lo senão perdendo-o?
Volto à frase proferida por Keneth após assassinar a pauladas seu amado Joe e em seguida se envenenar:
 “- Devo tê-lo amado muito pois o escolhi para me matar”.
Diga-se que ela se assemelha àquela dita por Lacan no Seminário XI, a propósito da essência mesma da relação de transferência:
“Eu te amo, mas porque inexplicavelmente amo em ti algo que é mais do que tu – o objeto a minúsculo – eu te mutilo.”  

    Angela Porto

Um comentário:

  1. Para deixar ainda um pouco mais nutritiva essa boa prosa, vou continuar sua referencia a Lacan, Sem.XX-cap.11:
    "...é que o saber, que estrutura por uma coabitação específica o ser que fala, tem a maior relação com o amor. Todo amor se baseia numa certa relação entre dois saberes inconscientes."
    O Sujeito Suposto Saber é o que motiva a transferencia. Reportem-se ao Sem.VIII, sobre a 'escolha do amor'. Trata-se do reconhecimento a signos sempre pontuados enigmaticamente, pela maneira como "o ser é afetado enquanto sujeito do saber inconsciente".
    "Não há relação sexual porque o gozo do Outro, tomado como corpo, é sempre inadequado- perverso por um lado, no que o Outro se reduz ao objeto 'a' - e do outro, eu direi louco, enigmatico. Não é do defrontamento com este impasse, com essa impossibilidade de onde se define um real, que é posto à prova o amor? Do parceiro, o amor só pode realizar o que chamei, por uma espécie de poesia, para me fazer entender, a coragem, em vista desse destino fatal. Mas é mesmo de coragem que se trata, ou dos caminhos de um reconhecimento?..."

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