sexta-feira, 29 de outubro de 2010

O que é ser normal?


 “não havia anormais quando a homossexualidade era a normal, nem anticristãos antes de Cristo”(Proust em Sodoma e Gomorra.)
Ela chegou às nove horas, salto alto, bolsa dourada grande, o recorte da blusa mostrava os seios, sobrancelha e cabelos pintados, o rosto maquiado encobria os pelos, olhos verdes bonitos. Apresentou-se e começamos a conversa. No inicio, de minha parte, alguns constrangimentos, não sabia tratá-la, se como homem ou mulher:
 Após fazer o encaminhamento jurídico solicitado saímos do escritório, andamos juntas alguns quarteirões, ela, sob os risos e chacotas das pessoas que passavam pela rua .   Depois, com dois beijinhos, como sempre fazem duas mulheres, nos despedimos.
Tenho três filhos que moram com a mãe; hoje sou casada com  Honório, vivemos nossa vida sem incomodar ninguém. Faço doces para fora, cuido da casa e quero adotar uma criança. O caso está no juiz – mas o motivo da minha vinda aqui é outro: é que tenho recebido agressões de pessoas do meu bairro e preciso me defender. Procuro ajudar os vizinhos quando eles precisam – minha casa é como de todas as pessoas simples – quando as pessoas ficam curiosas mostro a casa e explico a minha vida. Chamo-me Odete – sou transexual”.
Esta escuta me conduziu a algumas reflexões sobre a sexualidade humana,   naquilo que se convencionou  chamar de normal e anormal, tomando como base as Conferências XX e XXI  de Freud, onde ele aponta para as seguintes tópicos:
 1)A sexualidade humana não se restringe ao aspecto reprodutivo:
 “sexualidade e reprodução não coincidem, pois é óbvio que todas as perversões negam o objetivo da reprodução”
2) A  influência da sexualidade infantil  na vida adulta.
O aforismo freudiano “A criança é o pai do homem” é o elemento chave que nos leva a buscar na história da sexualidade infantil o profético da vida adulta.
3)Dos impulsos  homossexuais que   aparecem nos sintomas neuróticos.
 As pulsões sexuais são traços próprios da condição humana, presentes em todas as estruturas e manifestações clínicas, quer sejamos homossexuais, heterossexuais ou bissexuais.
         4)Dos    traços  perversos  que  quase sempre estão presentes na relação normal.
 O  beijo que une duas zonas erógenas e não dois genitais,é, portanto, um desvio perverso, e mesmo assim,  é aceito  nas relações amorosas e visto com freqüência nas representações teatrais. E o que define a perversão é a exclusividade com que se efetuam os desvios sem finalidade reprodutiva, não pela “extensão do objetivo sexual nem pela substituição dos genitais e, mesmo, nem sempre na escolha de objeto”.
Conclui que “o abismo entre sexualidade normal e perversa é, naturalmente, muito diminuído por fatos dessa espécie“ E tudo aquilo que chamamos de normal no comportamento sexual “é na realidade, o ponto final de uma longa peregrinação”.

 Aqui ficam as questões:
Apesar da notável contribuição de Freud, e de toda liberdade sexual conquistada na década de 60, as   dificuldades em relação à sexualidade se manifestam nos conceitos e pré-conceitos. 
Para o senso comum  Odete   é uma  pessoa perversa (má ) por ser transexual.
Por que, querendo ser uma  mulher normal, Odete  tem que exibir com exagero os ornamentos considerados  femininos? Seria a  manifestação  de traços perversos  (conheço a lei mas desafio? ) ou  o conflito próprio do transexual, negação ou afirmação da  realidade corporal que carrega  ?

 Lucia Cunha Frota




O que é ser normal?

Um comentário:

  1. "Por que, querendo ser uma mulher normal, Odete tem que exibir com exagero os ornamentos considerados femininos? Seria a manifestação de traços perversos (conheço a lei mas desafio? ) ou o conflito próprio do transexual, negação ou afirmação da realidade corporal que carrega?"
    Lucia, Joan Rivière(1929)propõe o conceito de "mascarada" que possui uma dupla função: proteção contra uma suposta retaliação paterna pela apropriação do falo e também a urdidura duma identidade que "disfarce" a posse do falo que foi negado pela mãe e posteriormente pelo pai. Em Lacan, a mascarada assume o lugar de metáfora da posição feminina entendido como um lugar discursivo, efeito de linguagem, repercutindo na forma como o sujeito se situa diante do jogo amoroso.A mulher é sempre "falada".Não há outra possibilidade no discurso.Todos os adereços de que "Odete" se vale,para edificar sua "mulher", não são suficientes para dar conta do que seja "ser mulher", nem mesmo usando o que a cultura arbitráriamente considera adequado.Portanto, Odete, neste particular,dá dois beijinhos,usa bolsa dourada,etc, faz como as mulheres, se utiliza da "mascarada" recurso simbólico para se dizer mulher.Talvez, aí esteja a questão no caso dela, que acredita que a mulher exista. Mostra os adereços, mostra a casa, mostra o que não há, para se fazer reconhecer como tal...e crê que assim o será.O recurso da lei é seu recurso, então, para ser respeitada como cidadã...como qualquer um.

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