domingo, 3 de junho de 2012

Psicanálise, ciência do 'óbvio' ?


No seminário do Ato, lição de 13 de março de 1968, diz Lacan:
 “A psicanálise, ela se pratica com um psicanalista”.
 Adoro as supostas obviedades de Lacan.
 São  supostas, as obviedades da psicanálise, do discurso, da vida.
 Aquilo que não exigiria esclarecimento, por parecer claro, por estar diante dos olhos.
Tal afirmativa de Lacan pode sugerir a colocação  do  psicanalista num lugar cheio de atributos especiais, dos quais é preciso fazer avaliação, verificar  ‘curricula vitae’, como o bom latim exigiria, e,  no seu plural, conferir afiliações psicanalíticas?
Pelo contrário, com um psicanalista não enfatiza o psicanalista, mas o com.
Com aponta para a  instrumentalidade do  lugar, da função, sem o que, uma psicanálise não seria factível.
 E  a  factibilidade de uma psicanálise só se pode pensar,  na sua essência, de uma posição “impensável”, qual seja a de um “tendo sido psicanalisando”, da qual só resulta  “um sujeito  prevenido de que não poderia se pensar como constituinte de toda ação sua”.
Pois se a sua essência é assumir o lugar onde se situa o objeto ‘a’ nesta operação, qual é o estatuto de um  sujeito que  se coloca nesta posição?
Em psicanálise não há ‘óbvio’.
O óbvio é evidente, claro, indiscutível, cercado de certeza, declarado, inteiro.
Lacan diz que há uma “coalescência da estrutura com o sujeito suposto saber, é isso que atesta no neurótico o fato de ele  interrogar a verdade de sua estrutura e de se tornar, ele mesmo, em carne e osso, essa interrogação. Em suma, ele mesmo é sintoma.”(Sem XVI, pagina 374)
 O óbvio, o analista deve  tomá-lo como um “eu  não vejo”  que exige  trabalho de corte, de ‘tranchement’(fatiamento, trinchamento).
 Entretanto o analista não é um mestre em  seus cortes, nem  no manejo de  suas facas.
 Ele é “tranchements”, fatia incluída no corte.
Talvez, haja, como  diz  Nelson Rodrigues,  “óbvios ululantes”. 
Óbvios que ululam.
Esses, talvez, já incluam, na coalescência com a estrutura, um grito, um brado, a vociferação de um  sofrimento que se quer dizer, uma pergunta que se pode fazer trabalho, com um  psicanalista.
                                                                                       Ângela Porto

7 comentários:

  1. BRAVÔ !!!!!

    Maria Mercedes Brito

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  2. Angela! que " leitura/grito " interessante!! É preciso escutá-lo!
    bjs
    Rosely

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  3. Adorei Ângela,
    Um grande beijo,
    saudades!
    Bárbara

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  4. Sem óbvio, mas não sem tornar-se "ele mesmo... essa interrogação", num grito: o que que é Isso?
    Se há algum óbvio, do lado do analista, é não deixar de perguntar-se, a cada escuta: há analista? Óbvio sim, que não podemos parar de inquietar-nos, nessa tarefa de dirigir uma análise, sem qualquer técnica garantidora, sobre a ética da psicanálise, a ética que se impõe ao posicionar o analista em "a", objeto como causa.
    Essa posição de conduzir uma análise, causar no sujeito o desejo de ir em direção ao desconhecido, ao campo do nada óbvio, só pode mesmo ser da ordem do impossivel.

    Bj
    Carmen

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  5. Oi Lúcia,
    Fiquei passeando pelo Tear4, apreciando a escrita de vcs, as articulações,a insistência na ética da psicanálise e seus efeitos...muito, muito bom.Gostei de ser apresentada à escritora portuguesa Lídia Jorge, que fala sobre o tempo em 1947, ( aquele fragmento foi p/mim da ordem de uma experiência). Bom feriado,grande abraço,
    Regina

    obs do blogger: vide http://tear4-psicanalise.blogspot.com.br/2012/04/pelo-avesso-da-banalizacao.html

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  6. Oi Tia, há muito não tenho lido textos psicanalíticos. Tive que fazer um exercício mental enorme para fazer compreensível algumas partes. Foi em um determinado momento depois da terceira leitura, pude, na minha compreensão de quem perdeu o costume de ler textos mais complexos, mas de gente que pensa, pude perceber que o texto falava exatamente disso. O que não é obvio e que nos coloca em movimento com o texto. Gostei! Beijos e saudades... vai uma foto da Clarinha. Tô te esperando por aqui pra gente tomar um banho de Igarapé e um gostoso tacacá.
    Nanda

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  7. o óbvio com um psicanalista. Muito bom o texto todo. Beijos

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