Observamos
que às vezes somos pegos de surpresa por uma Homofonia que, em conversas corriqueiras
despertam uma curiosa dúvida coletiva, numa espécie de estranheza frente a um “como
é mesmo que se escreve? É com dois
esses? Ou cê cedilha? ”
O
inconsciente, estruturado como uma linguagem, faz suas manifestações assim,
quase que como num truque de esconde/mostra faz suas travessuras numa espécie
de falha ou de um tropeço que nos desperta. Por essa fresta de luz vamos ao
enigmático conflito da nossa divisão de ser falante/falado, na inquietante
condição de não sermos os reais detentores das palavras das quais somos
emissários/destinatários. Há um desejo em causa aí.
Em
“A Instância da Letra no Inconsciente”, um trabalho minucioso por sua visada
literal e clínica, Lacan propõe uma problematização conceitual da Função da
‘Letra’, como possibilidade de uma transmissão no real da experiência analítica,
por uma centelha que passasse entre audível e legível, com a particularidade de
não anular a porção de ‘enigma’ com que o desejo inconsciente desafia nossa
‘filosofia natural’.
É
então por uma elaboração lógica que Lacan articula a premissa de que o escrito é
necessário à decifração de uma escuta que reescreva a gramática particular
daquele som e re-enderece ao sujeito as assonâncias do que aí sutilmente se
insinua.
Com
esta perspectiva literal de quanto se perde de vida, quando não se cria as
condições necessárias para dar lugar ao singular do desejo, Lacan traz à tona o
paradoxo de um Escrito para ser Ouvido nas urdiduras de uma Palavra que se faça
Ler.
Freud
atravessou guerras, e teve que se exilar, em meio aos conluios tão evidenciados
em seu insistente trabalho de alertar, sobre a íntima captura narcísica das
paixões em que o Humano se deixa envolver, no silencio imantado do gozo dos
ideais, pelo prazer de saber e de dominar o outro. Gozo que se instaura como um
tempo anterior e imanente ao estatuto de humanidade. Tempo em que a linguagem se
trespassa em Ser, como servidão à condição autônoma da liberdade estruturada
como Neurose.
A
Neurose é para Freud uma interrogação que o Ser coloca para o Sujeito, “lá de
onde ele estava antes mesmo que o sujeito viesse ao mundo”.
Mas,
contudo, há que se atualizar sempre pelo trabalho que nos faz seguir nas
trilhas da experiência que ensina o indestrutível do desejo na subversão do
sujeito e, mais ainda, perseverar no que for possível de se fazer saber da
verdade daquilo que no humano grita através de seu escrito,
Voz
a se ouvir na singularidade da letra que chega ao destino.
Através
do poeta, deixemo-nos atravessar pelo poema.
“Cruzou
por mim, veio ter comigo, numa Rua da Baixa
Aquele
homem mal vestido, pedinte por profissão que se lhe vê na cara,
Que
simpatiza comigo e eu simpatizo com ele;
E
reciprocamente, num gesto largo, transbordante, dei-lhe tudo quanto tinha
(exceto,
naturalmente, o que estava na algibeira onde trago mais dinheiro:
Não
sou parvo nem romancista russo, aplicado,
E
romantismo, sim, mas devagar...)
Sinto
uma simpatia por essa gente toda, sobretudo quando não merece simpatia.
Sim,
eu sou também vadio e pedinte,
E
sou-o também por minha culpa.
Ser
vadio e pedinte não é ser vadio e pedinte:
É
estar ao lado da escala social,
É
não ser adaptável às normas da vida,
Às
normas reais ou sentimentais da vida –
Não
ser Juiz do Supremo, empregado certo, prostituta,
Não
ser pobre a valer, operário explorado,
Não
ser doente de uma doença incurável,
Não
ser sedento da justiça, ou capitão da cavalaria,
Não
ser, enfim, aquelas pessoas sociais dos novelistas
Que
se fartam de letras porque têm razão para chorar lágrimas,
E
se revoltam contra a vida social porque têm razão para isso supor.
Não:
tudo menos ter razão!
Tudo
menos importar-me com a Humanidade!
Tudo
menos ceder ao humanitarismo!
De
que serve uma sensação se há uma razão exterior para ela?
Sim,
ser vadio e pedinte, como eu sou,
Não
é ser vadio e pedinte, o que é corrente:
É
ser isolado na alma, e isso é que é ser vadio,
É
ter que pedir aos dias que passem, e nos deixem, e isso é que é ser pedinte.
Tudo
mais é estúpido como um Dostoiévski ou um Gorki.
Tudo
mais é ter fome ou não ter o que vestir.
E,
mesmo que isso aconteça, isso acontece a tanta gente
Que
nem vale a pena ter pena da gente a quem isso acontece.
Sou
vadio e pedinte a valer, isto é, no sentido translato,
E
estou-me rebolando numa grande caridade por mim.
Coitado
do Álvaro de Campos!
Tão
isolado na vida! Tão deprimido nas sensações!
Coitado
dele, enfiado na poltrona da sua melancolia!
Coitado
dele, que com lágrimas (autenticas) nos olhos, Deu hoje, num gesto largo,
liberal e moscovita,
Tudo
quanto tinha, na algibeira em que tinha pouco, àquele
Pobre
que não era pobre, que tinha olhos tristes por profissão.
Coitado
do Álvaro de Campos, com quem ninguém se importa!
Coitado
dele que tem tanta pena de si mesmo!
E,
sim, coitado dele!
Mais
coitado dele que de muitos que são vadios e vadiam,
Que
são pedintes e pedem,
Porque
a alma humana é um abismo.
Eu
é que sei. Coitado dele!
Que
bom poder-me revoltar num comício dentro da minha alma!
Mas
até nem parvo sou!
Nem
tenho a defesa de poder ter opiniões sociais.
Não
tenho, mesmo, defesa nenhuma: sou lúcido.
Não
me queiram converter a convicção: sou lúcido.
Já
disse: sou lúcido.
Nada
de estéticas com coração: sou lúcido.
Merda!
Sou lúcido.
A
Plácida Face anônima de um morto.
Assim
os antigos marinheiros portugueses,
Que
temeram, seguindo, contudo, o mar grande do Fim,
Viram,
afinal, não monstros nem grandes abismos,
Mas
praias maravilhosas e estrelas por ver ainda.
[Fernando Pessoa – Poesias de Álvaro de Campos]
Lucia Montes